Senhor vós sois o Deus dos vivos, não dos mortos, enviai a vossa graça, Ámen!
É este princípio que importa agora descrever. Na teologia política cristã tradicional, datando da época constantiniana, qualquer soberania e qualquer legitimidade política vinha de Deus, e mais precisamente de Jesus Cristo, ao mesmo tempo rei e sacerdote, rei enquanto representando o seu povo junto do Pai, e sacerdote enquanto ofertando ao Pai o seu sacrifício perfeito, porque divino, em reparação dos pecados da humanidade decaída. Ora, os cristãos, pelo sacramento do baptismo, graças ao qual eles se «revestem» de Cristo (Gal 3,29), participam assim da realeza sacerdotal de Cristo; passa-se o mesmo, de maneira plena, com os sacerdotes e os bispos, por efeito de um sacramento especial, mas também com os reis e, muito particularmente, com o rei de França, que beneficiava, desde a sagração de Clóvis em Reims, de uma unção que lembrava a dos antigos reis de Israel e fazia da França a filha primogénita da Igreja. Esta unção fazia do rei o representante de Cristo sobre a Terra, pelo menos no que concernia aos assuntos temporais. nesta qualidade, o rei era teoricamente independente em relação às leis, em virtude da máxima de Ulpiano: princeps legibus solutus est; mas mantinha-se ao mesmo tempo ligado às leis e aos costumes do reino, que a tradição jurídica designava por «constituição francesa», assim como à lei natural. A contradição era geralmente resolvida lembrando o exemplo da submissão voluntária de Cristo à lei, e fazendo do rei (ou o imperador) uma «lei viva» (lex animata). Além disso, a monarquia francesa tinha igualmente a obrigação de respeitar costumes e privilégios. E assim, a verdade é que o rei continuava a representar a fonte de direito. É por este motivo que, em 1787, o próprio Luís XVI poderá replicar ao duque d'Orléans: «É legal porque eu assim o quero.»
Fazendo eco à cristologia paulina, onde Cristo é o esposo e a cabeça da igreja, a teologia e o direito consideravam o rei como esposo da nação, o marido da República, já que esta era tradicionalmente simbolizada por uma figura feminina. Esta relação esponsal, concebida juridicamente como um contrato sinalagmático, impunha ao rei e à nação um determinado número de obrigações. De um modo mais geral, a relação entre o rei e os seus vassalos era concebida sobre um modelo familiar que o próprio Luís XVI reclamava para si mesmo, afirmando que «tudo o que o pai deve ais seus filhos, o irmão aos seus irmãos, o amigo ao seu amigo, o príncipe deve-o aos seus vassalos»; ou ainda: «O rei, o pastor, o pai, é uma só e mesma coisa.» O rei devia-se aos seus vassalos e os vassalos deviam-se ao rei. Luís XVI escrevia assim: «Como nada os [meus povos] pode dispensar, quando eu for injusto ou tirano, de me serem submissos, se por seu lado todos, se por seu lado todos eles violassem os seus deveres para comigo, nada me poderia subtrair à obrigação de cumprir os meus para com eles». Para o rei, isso podia ir precisamente até ao sacrifício. assim, como escreveu um jurista da Idade Média, Aeneas Silvius: «O próprio príncipe, cabeça do corpo místico da respublica, é obrigado a sacrificar a sua vida cada vez que o bem comum o exige.» Do mesmo modo, Luís XVI às delegações dos guardas nacionais, em 13 de Julho de 1790, falando dos franceses: «Dizei-lhes que, se não posso deslocar-me convosco aos seus asilos, quero aí estar pela minha afeição e pelas leis protectoras do fraco, velar por eles, viver para eles, morrer, se for preciso, por eles.» Luís XVI era, aliás, dotado de um carácter profundamente bom, que infelizmente foi assemelhado à fraqueza; esse carácter tinha chamado especialmente a atenção de Benjamin Franklin quando conviveu com ele: «Nenhum soberano que algum dia reinou teve, inegavelmente, mais bondade no seu coração, nem possuiu em maior grau o leite da ternura humana que Luís XVI». Esta qualidade parece de resto ter sido o apanágio da sua linhagem, pois lemos numa carta de John Adams a Thomas Jefferson em 1814: «O leite da ternura humana dos Bourbons confere mais segurança à humanidade do que a ambição desmedida de Napoleão.
De uma maneira geral, o rei de França era a pedra angular de toda a ordem jurídica e social; era também obrigado, pela sua sagração, a ser o protector da Igreja. Neste contexto, o regicídio - no sentido da destruição do princípio real - visava destruir o elo entre o rei e a República, e, por conseguinte, entre Cristo - ou a Igreja - e a França e, consequentemente, destruir toda uma civilização que a pouco e pouco desabrochara e se tinha expandido na Europa ocidental, até mesmo o próprio cristianismo. É, evidentemente, ao espírito da Revolução que se deve imputar o regicídio. Este espírito consiste numa visão do mundo profundamente secularizada, colocando como fundamento da soberania a natureza, em vez de uma divindade revelada. Ele incluiu as Luzes newtonianas, mistura curiosa de cientismo e de esoterismo que se encontra na franco-maçonaria, as Luzes francesas, que não são senão uma adaptação superficial desta últimas ao grande público francês, enxertando-as no jusnaturalismo descristianizado da oposição parlamentar, prevalecente à época nos meios intelectuais.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
Presépio
Há 1 dia
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