domingo, 29 de maio de 2011

Revolução e Antigo Regime part I

Enviai um Cirineu Senhor, para que possamos levantar-nos e levar a nossa cruz, Ámen!

A morte do rei Luís XVI, em 21 de Janeiro de 1793, representa um momento chave da Revolução Francesa. É comummente aceite que o acontecimento acelerou consideravelmente o desenvolvimento da violência política institucionalizada, de que ela foi como que o primeiro acto, e que este demarca claramente aquilo que se costuma designar por primeira Revolução, burguesa e liberal, de 1789-1791, e a segunda Revolução, popular e violenta, que é a do Terror. Esta simples constatação revela, na pessoa de Luís XVI, uma dimensão insuspeitada, como se ele tivesse organizado com a sua presença e a sua ausência alternadas a grande dramaturgia da Revolução.
É necessário distinguir dois tipos de regicídio. No primeiro, trata-se de matar, ou assassinar, um rei de quem se contesta a personalidade, ou a política. Por exemplo, o integrista Ravaillac contra Henrique IV, ou ainda Damiens contra Luís XV. Neste caso, o gesto regicida, longe de contestar a monarquia de direito divino, idolatra-a, fazendo dela uma norma utópica ideal e que se deve colmatar o insuportável afastamento, atacando a pessoa humana e falível que é dela depositária. No segundo caso, trata-se , ao contrário, de atingir a monarquia de direito divino no coração, de a destruir no seu cerne ao aniquilar o rei a encarna. A morte de Luís XVI participa deste segundo tipo de regicídio.
Aliás, é por essa razão que o regicídio revolucionário não se reduz à exclusiva morte de um homem, mas ataca também a família, a família real, e, através deles, um regime, a monarquia de direito divino, um tipo de sociedade, a França católica e monárquica do século XVIII, uma civilização, a civilização cristã de estilo constantiniano e, em última análise, um principio, a realeza sacerdotal de Cristo como pedra angular do edifício social e religioso do Ancien Regime. Com efeito, vista deste ângulo, a Revolução não foi mais do que um longo regicídio: a afirmação do terceiro estado em Assembleia Nacional representativa - fora dos quadros da legitimidade régia tradicional -, encerramento do rei nas Tulherias, Constituição Civil do Clero - que contradiz o papel tradicionalmente protector do rei para com a Igreja -, Constituição de 1791 que confere a soberania exclusivamente à nação, proclamação da República, processo do rei, condenação e morte, morte da família real, descristianização forçada, etc. Deste ponto de vista, a continuidade entre as diferentes fases da Revolução Francesa surge de maneira mais nítida. A primeira de entre elas leva insensivelmente à morte do rei, que, por sua vez, precipita os acontecimentos e mergulha a França no Terror. Verifica-se, portanto, uma unidade orgânica das duas revoluções, que formam assim um «bloco», no qual a morte do rei toma um relevo inesperado.
Donde procede, pois, o regicídio? É necessário notar que a dinâmica da Revolução não poderá reduzir-se a causas puramente materiais, sociológicas ou económicas. De facto, as condições de vida na França de 1789 são melhores do que no passado, e quase idênticas às dos franceses sob a restauração. Se aqui e acolá há crises e fome, elas por si sós não podem motivar mais do que revoltas, mas não revoluções - de tal modo o regime nessa época é sentido como legítimo. Conclui-se daí que é necessária uma dimensão espiritual e ideológica para catalisar o descontentamento e as ambições insatisfeitas e empurrar para uma mudança de regime e de civilização que, à partida, não é desejada por ninguém. Pode-se assim opor, como o fizeram numerosos autores , por exemplo Michelet, o espírito da Revolução ao espírito do cristianismo, que se combatem numa nova guerra de religião - o espírito da Revolução, mantendo-se apesar das aparências tão religioso quanto o espírito do cristianismo. Seria excessivamente longo fazer aqui uma descrição desses dois espíritos, que se deixam apreender como um complexo doutrinal mais ou menos coerente, condicionando os juízos de valor, investindo nas motivações das pessoas, transformando as estruturas sociais e imprimindo nelas a sua dinâmica própria. Nesse contexto, a morte de Luís XVI já não aparece como um acontecimento histórico isolado, mas como um fenómeno emblemático da oposição de dois espíritos: um homem encarnando um determinado princípio é condenado e morto a fim de que este princípio não possa mais influenciar o desenrolar das questões humanas.


Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

domingo, 22 de maio de 2011

O sacríficio do Rei III

Somos pó, mas Deus nos Ama, Ámen!

Seja como for, a morte de Luís XVI surge como um enigma impenetrável à consciência do nosso tempo, sinal insistente e inevitável que remete para uma outra ordem de coisas, uma economia insuspeitada da existência terrestre que parece ultrapassar e contradizer os esquemas mentais mais comummente aceites: paganismo, espiritualismo, ateísmo, racionalismo... Centro secreto e alicerce oculto da modernidade, o sacríficio do rei parece ter sido rasurado pela normalização historiográfica, relegado como uma antiguidade para sempre cristalizada num passado morto, que um punhado de nostálgicos quererá depois brandir como se fosse um espectro. De facto, Jaurès, numa passagem célebre, dirá também dos reis da Restauração, aliás enfeudados à nova religião: os reis poderão por momentos regressar. Faça-se o que se fizer, doravante não serão mais do que fantasmas.» Fantasmas, com efeito, ecos enfraquecidos do rei sacrificado, cujos passos sobre o cadafalso não cessam, no entanto, de ressoar nos corredores da história da França, como sobre os terraços do castelo de Elsenor. Mas este rei sacrificado não é um fantasma, continua ainda vivo. Com efeito, pela sua abnegação, coragem e dedicação, Luís XVI representa um exemplo de vida, a do único grande homem da Revolução, sem dúvida, aquele que ninguém soube ver e escutar. E, inversamente, poderá bem acontecer que, superando por fim as aparências, se descubra um dia, sob o espírito da Revolução, sob os seus sonhos pseudomessiânicos de uma nova ordem e das suas exigências de «sacríficio infintio» (Michelet), um espectro caricato que dia após dia vai tentando arrastar a humanidade cativa para as trevas e para a morte - um «espectro que atormenta a Europa», como dizia Marx referindo-se ao comunismo. Talvez um dia, sem ilusão e sem nostalgia, saibamos voltar-nos para Luís XVI para esconjurar todos esses fantasmas e aprender com ele os mistérios da vida, do sofrimentos, da morte e da ressurreição:

- E verei eu o bosque amarelo e o claro vale,
A Esposa de olhos azuis, o homem de fronte vermelha, ó Gália
E o branco Cordeiro Pascal, a seus amados pés,
- Miguel e Cristina -, e Cristo! - fim do Idílio.

Henri Beausoleil, Filósofo

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

sábado, 14 de maio de 2011

O sacríficio do Rei II

Que tudo vá-lhe a pena, porque assim permitiste Senhor, Ámen!

O futuro do ministro da Justiça de Napoleão, Fouché, fala assim de um assustador sacrifício, efectuado ao «imolar o representante da realeza, o pai da monarquia, para edificar uma República». Michelet, aliás hostil ao regícidio, traça um paralelo com os antigos Romanos: «Que fizeram os Romanos para fundar o seu Capitólio e dotá-lo de eternidade? Puseram nos seus alicerces uma cabeça sangrenta, sem dúvida a cabeça de um rei.» Evidentemente, o sacrifício em questão, longe de estabelecer a paz civil, de facto permitiu o Terror e as guerras revolucionárias.
A fundação da República coincide, precisamente, com este impulso messiânico que deve fazer saltar o ferrolho das antigas fronteiras naturais da França e revolucionar o mundo inteiro pelo Terror e pelo sangue. E o sacrifício de Luís XVI, verdadeira declaração de guerra ao mundo antigo, foi o acto que venceu as últimas resistências. Jaurès cita nesse sentido um contemporâneo, um certo Prudhomme, que escreve: «A liberdade assemelha-se a essa divindade dos Antigos, que só podia tornar.se propícia e favorável se lhe fosse oferecida em sacrifício a cabeça de alguém carregado com uma grande culpa. Os druidas prometiam a vitória aos nossos antepassados, que partiam para uma segunda campanha, quando traziam de regresso da primeira uma cabeça coroada sobre o altar do Hércules gaulês.» Michelet pensa da mesma maneira: «Muitos acreditam que não se podia passar a fronteira sem ser sobre o corpo do rei, que era preciso um sacrifício humano, um homem imolado ao Deus das batalhas» (IV, 254). Desaparecido o rei, desapareciam os limites que continham a hubris revolucionária dentro de justos limites, e eis a nova religião lançada à conquista do mundo, jorrando das suas fronteiras para impor ao mundo a sua «nova ordem dos séculos».
O estatuto sacrificial da morte do rei terá também sido notado por um historiador e homem político como Jaurès - que, de resto, na sua Histoire de la Révolution, não pode impedir-se de se imaginar a interceder pelo rei e a arrancar à convenção em lágrimas a sua sobrevivência. Vê-se obrigado a reconhecer na morte de Luís XVI uma «transposição estranha da crença cristã», onde «toda a humanidade se associa à morte daquele que ela faz rei [...]»; por isso «é um ser novo que vai surgir» graças ao sacrifício de Luís XVI, que abre uma «fonte», uma «nascente de sangue e de regeneração: fons lavacri et regenerationis» que serve de nova pia baptismal à civilização que vai nascer. Contudo, uma coisa o deixa perplexo: a «contradição inquietante» imanente à morte de Luís XVI; ela é simultaneamente «sinal de um mundo novo», ateu e democrático, e, ao mesmo tempo, «diga-se no passado à longa cadeia de superstições sangrentas». A contradição desaparece quando se compara sacrifício cristão e pré-cristão; a superação do cristianismo não significando qualquer outra coisa do ponto de vista de uma misteriosa economia espiritual, que o regresso aos sacrifícios pré-cristão; o das pombas e dos touros na Grécia e em Israel, o dos pharmakoi atenienses, o dos milhares de vítimas humanas nos templos azetecas -e, na nossa época, o sacrifício de dezenas de milhões de seres aos novos ídolos da raça, da nação, da classe e do progresso, ou ainda as hecatombes ordinárias e extraordinárias da nossa civilização de que fala Michel Serres nas suas Statues, desde os acidentes rodoviários à explosão do vaivém espacial Challender.
Mas a morte de Luís XVI pode ser encarada de uma forma totalmente oposta ao sacrifício neo-pagão que os revolucionários vêem nele, quer dizer, como uma figura do sacrifício cristão, não sendo as duas leituras forçosamente contraditórias. Já Sansão e Edgeworth tinham entrevisto o significado cristológico da morte de Luís XVi: «[O rei] suportou tudo isto com sangue-frio e uma firmeza que nos deixou surpreendidos. Continuo muito convencido de que tinha haurido esta firmeza nos princípios da religião de que ninguém mais do que ele parecia penetrado e persuadido.» paul e Pierrette Girault de Coursac esboçaram deste modo um paralelo entre a morte do rei de França e certas cenas da Paixão. Jesus foi condenado à morte pelos fariseus que seguiram o conselho do sumo-sacerdote Caifás: «Convém-vos que morra um só homem pelo povo para que não pereça toda a nação» (Jo 11, 49). Luís XVI foi condenado À morte para o bem da República: «Luís XVI deve morrer para que a pátria viva» (Robespierre). Foi conduzido ao cadafalso como jesus À cruz. Os soldados apoderaram-se de Jesus para lhe amarrarem as mãos: «O tribuno e os seus ajudantes apoderaram-se de Jesus e ligaram-lhe as mãos» (Jo 28,12). Tambémm a Luís XVI ligaram as mãos. Jesus, sobre a cruz, implorou o perdão de Deus: «Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Também Luís XVI foi o primeiro a perdoar ao «povo que estão a extraviar». «Os Franceses são bem desventurados por se deixaram assim enganar.» Depois, antes de subir para a guilhotina, teve estas palavras: «Peço a Deus que o sangue que ides derramar nunca caia sobre a França.» Os soldados, depois da morte de Jesus, «tomaram as suas vestes e dividiram-nas em quatro partes, uma para cada soldado» (Jo 19,23). Também a multidão partilhou o vestuário de Luís XVI depois da sua decapitação. A multidão que assistiu à morte de Jesus assumiu a sua responsabilidade: «E todo o povo respondeu: "Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos"» (Mt 27,24). De igual modo os republicanos: «Um cidadão sobe para a guilhotina, mergulha o braço no sangue, apanha uma mão-cheia de coágulos e asperge por três vezes a multidão dos assistentes que recebem, cada um deles, uma gota sobre a testa: "Irmãos, ameaçaram-nos de que o sangue de Luís Capeto cairia sobre as nossas cabeças: pois bem, que ele caia; Luís Capeto lavou tantas vezes as mãos no nosso! Republicanos, o sangue de um rei traz felicidade".» O que recorda igualmente a teologia paulina da epístola aos Hebreus: «Segundo a Lei, quase tudo é purificado pelo sangue, e sem efusão de sangue não há remissão» (HEb 9,22). Depois da morte de Jesus, «toda a multidão [...] se foi embora batendo no peito» (Lc 23,48). Da mesma maneira, Paris ficou em estado de choque. Finalmente, o dia da morte de Luís XVI, 21 de Janeiro, é também o dia da festa de Santa Inês, nome cuja origem vem desse meigo animal que é o cordeiro. Este paralelo revela talvez a verdadeira personalidade de Luís XVI: cordeiro destinado ao sacrifício. A sua repugnância, ou, mais precisamente, a sua incapacidade para fazer verter sangue, a sua pretensa fraqueza, não eram mais do que a expressão de uma profunda humanidade, que contrasta tão vivamente com a frieza rectilínea dos revolucionários jacobinos.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

domingo, 8 de maio de 2011

O sacríficio do Rei I

Dai-nos uma mente lúcida, e uma vontade firme, Ámen!

A morte do rei de França terá tido, portanto, consequências incalculáveis. O Ancien Régime devia ser, sem dúvida, profundamente renovado - Luís XVI apercebera-se disso e tinha instaurado um começo de democracia local por parte das assembleias provinciais. A religião católica esgotada, sem dúvida, e deformada pela sua caricatura jansenista, por séculos de controvérsias teológicas e de crises diversas, devia igualmente retomar um novo fôlego, mas em vez de reformar, preferiam destruir. E é assim que a morte do rei, longe de instaurar em França uma civilização pacífica e fraterna, terá precipitado brutalmente a nação nos abismos, fragilizando consideravelmente o país nos seus fundamentos mais profundos, dilacerando-o em facções político-ideológicas irreconciliáveis, sangrando-o sem possibilidade de regresso nas suas forças vivas e fazendo-lhe perder progressivamente o seu lugar no concerto das nações.
Eis ainda, por outro lado, outras consequências da morte de Luís XVI; a fraqueza drástica do executivo em França de 1792 a 1958, tendo muita dificuldade em reinventar a sua legitimidade; as consequências desastrosas desta fraqueza na condução das guerras, designadamente na prevenção da escalada do nazismo e do genocídio judeu; a perda progressiva de influência internacional da França, que se esforça cada vez mais por desempenhar o seu pólo pacificador anti-hegemónico tradicional nas relações internacionais; o paradoxal acto de dobrar-se sobre si mesma por parte da França; o peso exagerado de Paris, transformada em nova «cabeça» do país depois da morte do rei; a evacuação progressiva e radical do espiritual na vida colectiva; a perda da marca de referência masculina, estruturadora, na psique colectiva francesa, em que o rei representava tradicionalmente a figura do pai; a perda do verdadeiro sentido da liberdade; a despersonalização das relações sociais; a sobrevalorização do conflito como modo de resolução dos problemas da sociedade; a presença intempestiva de uma espécie de esoterismo «egipcionizante» em determinadas construções peculiares do novo regime (pirâmide do Louvre, pirâmide da Torre do Crédit Lyonnais em Lyon, etc); o triunfo da nova religião e a profileração do ocultismo e de formas subtis de opressão, sob o pretexto paradoxal e hipócrita de humanismo, de ateísmo, de laicidade e de racionalismo.
E foi assim que, pela decapitação do rei, um edifício milenar se desmoronou - o da antiga civilização cristã constantiniana, numa onda de choque que se propagou de país em país, derrubando por todo o lado as monarquias e enfraquecendo as Igrejas. Os avanços da civilização, doravante amputados da sua garantia espiritual, devem agora ser pagos por crises sociais, políticas e económicas, e guerras de extermínio duma amplitude sem precedente. Nomeadamente, o espírito da revolução iria dividir-se dentro de pouco tempo em princípios políticos e ideológicos contraditórios, procurando reciprocamente exterminar-se e vencer-se uns aos outros, para finalmente desembocar no mundo contemporâneo, que coincide precisamente com o imaginado por determinados sonhadores do século : um conglomerado de repúblicas laicas supostamente chegadas ao «fim da história», uma civilização tecnicista, toda ela votada à exploração do mundo material, mas à qual faltam, no entanto, o calor da vida e o sopro do espírito.
Em razão da vastidão das suas consequências, a morte de Luís XVI deve ser estudada de perto; apercebemo-nos então de que, pelas suas próprias configurações, ela não deixa de se revestir de um carácter religioso que parece entrar em vivo contraste com a modernidade política que dela procederá. De facto, a maior parte dos historiadores e memorialistas, querendo todavia escrever num registo muito prosaico, não pode impedir-se de, quando trata dela, evocar espontaneamente o termo profundamente religioso de «sacrifício», ao referir-se além disso à Antiguidade, até mesmo ao cristianismo. O sacrifício do rei é deste modo concebido como o acto sacrificial fundador do novo regime e de uma nova era na história do mundo.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande