Por João César das Neves
Vivemos estes dias um dos fenómenos mediáticos mais inesperados, atrevidos e provocadores da nossa era. Terminou na passada sexta-feira, festa do Sagrado Coração de Jesus, o ano sacerdotal iniciado pelo Papa Bento XVI a 19 de Julho de 2009. Isto, que parecia pacífico, mostrou-se revolucionário.
A função sacerdotal, vasta e profunda na Igreja, tem na pessoa do padre o seu ponto central, como indica a referência aos 150 anos da morte de S. João Maria Vianney, humilde cura de aldeia. Organizar um ano de celebrações à volta dessa figura é, na nossa sociedade, um dos maiores atrevimentos culturais.
Não só o cristianismo é a única ideologia que hoje se pode atacar sem violar a tolerância, mas nele o padre é o aspecto mais desprezado. No Ocidente, a Igreja, mesmo se marginal, não goza do estatuto protector de minoria. Qualquer bizarria está mais defendida de críticas que ela. Tendo sido cultura dominante durante séculos, a crítica ao catolicismo é, no actual quadro de rebeldia adolescente, emblema de modernidade e progressismo, mesmo entre católicos. Aquilo que seria intolerável contra outros grupos sociais é comum com a Igreja em geral, e os padres em particular. Eles são, pode dizer-se, a menos respeitada de todas as profissões aceitáveis. Admira-se este ou aquele clérigo, mas o conjunto não presta. Assim, a surpreendente decisão de Bento XVI inclui uma serena mas contundente provocação à opinião dominante, levando os fiéis a meditarem sobre tudo o que a comunidade recebe das mãos e ministério dos sacerdotes.
Só que aquilo que devia ser um período de reflexão, gratidão e celebração transformou-se num momento de terrível pressão mediática. Os escândalos de pedofilia centraram as atenções nos padres, mas pelas piores razões. Chega-se a duvidar se, afinal, será profissão aceitável.
Este contraste entre propósitos e resultados chega para marcar este na longa história dos anos comemorativos. Não haverá outro em que o desvio seja maior. Isto não se deve a uma coincidência, porque realmente não aconteceu nada. Os factos que suscitam as acusações são antigos, alguns muito antigos, a ponto de nem permitirem investigações policiais. As notícias não são novidades. O único motivo está no interesse dos jornalistas, que decidem concentrá-las agora. Também é difícil sustentar a tese de cabala organizada, sendo impossível orquestrar uma campanha de tal dimensão.
O mais surpreendente no episódio é, assim, ele parecer genuinamente fortuito. Claro que o quadro cultural ajuda. Se os jornais procurassem casos de pedofilia de professores, médicos ou outros (que os poucos estudos sérios indicam serem bastante mais frequentes), ninguém se lembraria de deduzir daí consequências sobre a respectiva classe profissional. Aliás, se o fizessem, imediatamente apareceriam as competentes organizações sindicais a criticar abespinhadamente tais insinuações. Mas os padres não se defendem. Chocados com o comportamento dos colegas, batem no peito e baixam a cabeça. São os únicos profissionais que sofrem vergonha e responsabilidade por actos de outros.
Deste modo, o caso concede autorização aos inimigos da Igreja para insultar alegremente todo o clero, e até a instituição, sem temer resposta. Pior, se alguém disser que assim se conspurca uma multidão de inocentes por causa de um punhado de criminosos, logo se acusa de insensibilidade ao horrível sofrimento das crianças. É espantoso, mas existe mesmo muita gente capaz de retirar consequências para a doutrina e a hierarquia católicas destes poucos e velhos comportamentos aberrantes. Será que também duvidam da educação e medicina por existirem profissionais perversos?
Noutro sector isto não passaria de uma falhada operação de relações públicas. A Igreja, também nisto, é diferente. Que os nossos padres, totalmente inocentes, tenham sofrido terrível vitupério simplesmente por serem o que são, logo no ano que lhes era dedicado, é um mistério espantoso. Afinal, na perspectiva cristã, centrada na cruz, o ano sacerdotal correu mesmo bem.
Presépio
Há 1 dia
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