sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Credo quia absurdum

Este texto é de um ateu, que no entanto revela precisamente uma das causas da apostasia da fé, a transformação da essência da fé como Verdade, para uma fé de sentido e utilidade individual, consequência do liberalismo na Igreja, ou seja, a primazia da consciência do individuo sob todas as coisas..
E como o autor diz e dá o título a esta postagem a fé tornou-se um absurdo, mudança que a hierarquia da Igreja tarda em reconhecer para a combater no seu cerne, voltando a Fé à sua essência, aquilo que é próprio dela, a Verdade.

Retirado do livro: Existe Deus? - Ateísmo e Verdade - Paolo Flores DÁrcais

E então, se uma religião já não é verdadeira/falsa, mas válida segundo o sentido-consolação que consegue fornecer à existência, como separar a palha do grão, como distinguir entre uma grande religião e uma mesquinha superstição? Porquê o Cristianismo, e não a astrologia, já que no tocante ao «sentido» esta ( a astrologia), aparentemente, funciona bastante melhor como «fé» de massas, pelo menos a julgar pela facturação do ramo, cujo crescimento é exponencial? O critério do sentido é inexorável, leva ao subjectivismo mais radical, à fé como unguento e bálsamo da alma: a cada qual a sua maquilhagem religiosa, substituível segundo a moda e a necessidade, contando que nesse momento reaja bem com a pele da existência. Uma religião do sentido (e não da verdade) já não é uma religião de pessoas, mas de simples consumidores (de sentido).
Não basta. Se o critério da religião fosse o sentido, a saber, qualquer sentido com a condição de que funcione, prescindindo da verdade, teria razão Freud: a religião é uma ilusão (e inclusive Marx: é ópio dos povos - e, porventura, dos indivíduos). O «respeito»pós-moderno da religião enquanto inconsciência (obscuridade na consciência:obscurantismo!). Quanto mais ilusões tivermos tanto melhor porque de facto, só assim poderá a ilusão funcionar de modo pleno. Mas o niilismo mais radical, que a religião imputa a todo o relativismo moral, declarando-o assim invivível, celebraria assim o seu sabat imparável. Semelhante religião não pode funcionar. Quem aceitaria uma ilusão, sabendo que é tal? Para a aceitar, é necessário tê-la por verdadeira, exigir que pertença ao âmbito que é avaliado segundo as categorias de verdadeiro e falso, e que de facto constitua o seu núcleo. A religião como mero «sentido» está sempre exposta à possibilidade de se desmoronar. Não tem fundamento nem sequer raiz. Como vimos, é por natureza frívola e giróvaga. É a moda elevada a religião. E se consegue fazer um espectáculo maior ou menor do que a religião maior ou menor do que a religião da moda, é todavia só na concorrência entre homólogos.
Toda a religião quer ser verdade, e não pode renunciar a tal pretensão. Deve ser verdade. De outro modo, também o «sentido» se desvanece. o que grande parte da filosofia hermenêutica pode admitir e, inclusive, teorizar a partir de fora, a religião não o pode aceitar a partir de dentro. Portanto, a filosofia que «reconhece» a religião, desprezando as objecções «vetustas» e toscas dirigidas contra as verdades que a religião considera demonstráveis, toma a religião por aquilo que ele não pode, de forma alguma, admitir o que é. Não a honra, mas pisa-a, interpreta-a no abismo do equívoco consigo mesma, na absoluta opacidade, torpeza e inconsciência de si mesma. E a religião, ao favorecer esta filosofia como interlocutor privilegiado, como o pensamento com que estabelece um diálogo, aceita ser precisamente o que na essência deve recusar ser, se ambiciona continuar a ser.
Tanto mais que o sentido-consolação só tem razão de ser como resgate da dor terrena na vida eterna. Mas esta só tem sentido se for indubitável. Se a dúvida conseguir instalar-se de modo razoável, qualquer distracção terrena, qualquer divertissemente, se aperceberá facilmente dessa incerteza. Só é possível mudar de vida, em relação às quimeras do mundo, se o finito se encarar perante o certo eterno, não se pode pôr a circular a suspeita de que também a religião é incerteza, divertissemente - e, porventura, o mais sublime - para se distrair dos horrores do mundo. De outra forma, as quimeras do mundo cobrarão juros, porque o finito é, por agora, a «totalidade» certa que o homem experimenta. Por isso, se a filosofa convencesse os crentes de que o valor da religião reside no sentido, e não na verdade, eles deixariam de acreditar e, desta forma, desapareceria a fé, cujo sentido a filosofia pretende interpretar. Se não desejar perder este seu «objecto», a filosofia deve, pois, interpretar a fé nos termos da sua pretensão de verdade. Em suma, que os conteúdos de verdade de uma religião sejam verdadeiros ou falsos continua a ser essencial. Por isso, há que demonstrá-los, e o ónus da prova - incontrovertível, porquanto está em causa a existência no seu conjunto - cabe a quem os enuncia.
A não ser que se opte pelo caminho rigoroso da fé como pura fé, da fé que se esquiva radicalmente à argumentação racional. Mas que renuncia, assim, a todo o saber e, inclusive, a toda a comunicação discursiva. uma fé absolutamente vertical, singular, ilógica. Que talvez só a teologia de Barth, no século XX, tentou tomar a sério. Uma fé que, no sentido mais amplo, nada tem a dizer à razão e que, por isso, nada pretende raciocinar para converter. Que se expressa (e comunica) porventura nos comportamentos e nos gestos, e no rigoroso silêncio do logos. Com uma consequência óbvia: nenhuma pretensão de impor nada seja a quem for, utilizando Deus - e os «argumentos» da fé - como argumento em qualquer deliberação pública. Mais uma vez: credo quia absurdum.

Sem comentários:

Enviar um comentário