Enviai um Cirineu Senhor, para que possamos levantar-nos e levar a nossa cruz, Ámen!
A morte do rei Luís XVI, em 21 de Janeiro de 1793, representa um momento chave da Revolução Francesa. É comummente aceite que o acontecimento acelerou consideravelmente o desenvolvimento da violência política institucionalizada, de que ela foi como que o primeiro acto, e que este demarca claramente aquilo que se costuma designar por primeira Revolução, burguesa e liberal, de 1789-1791, e a segunda Revolução, popular e violenta, que é a do Terror. Esta simples constatação revela, na pessoa de Luís XVI, uma dimensão insuspeitada, como se ele tivesse organizado com a sua presença e a sua ausência alternadas a grande dramaturgia da Revolução.
É necessário distinguir dois tipos de regicídio. No primeiro, trata-se de matar, ou assassinar, um rei de quem se contesta a personalidade, ou a política. Por exemplo, o integrista Ravaillac contra Henrique IV, ou ainda Damiens contra Luís XV. Neste caso, o gesto regicida, longe de contestar a monarquia de direito divino, idolatra-a, fazendo dela uma norma utópica ideal e que se deve colmatar o insuportável afastamento, atacando a pessoa humana e falível que é dela depositária. No segundo caso, trata-se , ao contrário, de atingir a monarquia de direito divino no coração, de a destruir no seu cerne ao aniquilar o rei a encarna. A morte de Luís XVI participa deste segundo tipo de regicídio.
Aliás, é por essa razão que o regicídio revolucionário não se reduz à exclusiva morte de um homem, mas ataca também a família, a família real, e, através deles, um regime, a monarquia de direito divino, um tipo de sociedade, a França católica e monárquica do século XVIII, uma civilização, a civilização cristã de estilo constantiniano e, em última análise, um principio, a realeza sacerdotal de Cristo como pedra angular do edifício social e religioso do Ancien Regime. Com efeito, vista deste ângulo, a Revolução não foi mais do que um longo regicídio: a afirmação do terceiro estado em Assembleia Nacional representativa - fora dos quadros da legitimidade régia tradicional -, encerramento do rei nas Tulherias, Constituição Civil do Clero - que contradiz o papel tradicionalmente protector do rei para com a Igreja -, Constituição de 1791 que confere a soberania exclusivamente à nação, proclamação da República, processo do rei, condenação e morte, morte da família real, descristianização forçada, etc. Deste ponto de vista, a continuidade entre as diferentes fases da Revolução Francesa surge de maneira mais nítida. A primeira de entre elas leva insensivelmente à morte do rei, que, por sua vez, precipita os acontecimentos e mergulha a França no Terror. Verifica-se, portanto, uma unidade orgânica das duas revoluções, que formam assim um «bloco», no qual a morte do rei toma um relevo inesperado.
Donde procede, pois, o regicídio? É necessário notar que a dinâmica da Revolução não poderá reduzir-se a causas puramente materiais, sociológicas ou económicas. De facto, as condições de vida na França de 1789 são melhores do que no passado, e quase idênticas às dos franceses sob a restauração. Se aqui e acolá há crises e fome, elas por si sós não podem motivar mais do que revoltas, mas não revoluções - de tal modo o regime nessa época é sentido como legítimo. Conclui-se daí que é necessária uma dimensão espiritual e ideológica para catalisar o descontentamento e as ambições insatisfeitas e empurrar para uma mudança de regime e de civilização que, à partida, não é desejada por ninguém. Pode-se assim opor, como o fizeram numerosos autores , por exemplo Michelet, o espírito da Revolução ao espírito do cristianismo, que se combatem numa nova guerra de religião - o espírito da Revolução, mantendo-se apesar das aparências tão religioso quanto o espírito do cristianismo. Seria excessivamente longo fazer aqui uma descrição desses dois espíritos, que se deixam apreender como um complexo doutrinal mais ou menos coerente, condicionando os juízos de valor, investindo nas motivações das pessoas, transformando as estruturas sociais e imprimindo nelas a sua dinâmica própria. Nesse contexto, a morte de Luís XVI já não aparece como um acontecimento histórico isolado, mas como um fenómeno emblemático da oposição de dois espíritos: um homem encarnando um determinado princípio é condenado e morto a fim de que este princípio não possa mais influenciar o desenrolar das questões humanas.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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