sábado, 14 de maio de 2011

O sacríficio do Rei II

Que tudo vá-lhe a pena, porque assim permitiste Senhor, Ámen!

O futuro do ministro da Justiça de Napoleão, Fouché, fala assim de um assustador sacrifício, efectuado ao «imolar o representante da realeza, o pai da monarquia, para edificar uma República». Michelet, aliás hostil ao regícidio, traça um paralelo com os antigos Romanos: «Que fizeram os Romanos para fundar o seu Capitólio e dotá-lo de eternidade? Puseram nos seus alicerces uma cabeça sangrenta, sem dúvida a cabeça de um rei.» Evidentemente, o sacrifício em questão, longe de estabelecer a paz civil, de facto permitiu o Terror e as guerras revolucionárias.
A fundação da República coincide, precisamente, com este impulso messiânico que deve fazer saltar o ferrolho das antigas fronteiras naturais da França e revolucionar o mundo inteiro pelo Terror e pelo sangue. E o sacrifício de Luís XVI, verdadeira declaração de guerra ao mundo antigo, foi o acto que venceu as últimas resistências. Jaurès cita nesse sentido um contemporâneo, um certo Prudhomme, que escreve: «A liberdade assemelha-se a essa divindade dos Antigos, que só podia tornar.se propícia e favorável se lhe fosse oferecida em sacrifício a cabeça de alguém carregado com uma grande culpa. Os druidas prometiam a vitória aos nossos antepassados, que partiam para uma segunda campanha, quando traziam de regresso da primeira uma cabeça coroada sobre o altar do Hércules gaulês.» Michelet pensa da mesma maneira: «Muitos acreditam que não se podia passar a fronteira sem ser sobre o corpo do rei, que era preciso um sacrifício humano, um homem imolado ao Deus das batalhas» (IV, 254). Desaparecido o rei, desapareciam os limites que continham a hubris revolucionária dentro de justos limites, e eis a nova religião lançada à conquista do mundo, jorrando das suas fronteiras para impor ao mundo a sua «nova ordem dos séculos».
O estatuto sacrificial da morte do rei terá também sido notado por um historiador e homem político como Jaurès - que, de resto, na sua Histoire de la Révolution, não pode impedir-se de se imaginar a interceder pelo rei e a arrancar à convenção em lágrimas a sua sobrevivência. Vê-se obrigado a reconhecer na morte de Luís XVI uma «transposição estranha da crença cristã», onde «toda a humanidade se associa à morte daquele que ela faz rei [...]»; por isso «é um ser novo que vai surgir» graças ao sacrifício de Luís XVI, que abre uma «fonte», uma «nascente de sangue e de regeneração: fons lavacri et regenerationis» que serve de nova pia baptismal à civilização que vai nascer. Contudo, uma coisa o deixa perplexo: a «contradição inquietante» imanente à morte de Luís XVI; ela é simultaneamente «sinal de um mundo novo», ateu e democrático, e, ao mesmo tempo, «diga-se no passado à longa cadeia de superstições sangrentas». A contradição desaparece quando se compara sacrifício cristão e pré-cristão; a superação do cristianismo não significando qualquer outra coisa do ponto de vista de uma misteriosa economia espiritual, que o regresso aos sacrifícios pré-cristão; o das pombas e dos touros na Grécia e em Israel, o dos pharmakoi atenienses, o dos milhares de vítimas humanas nos templos azetecas -e, na nossa época, o sacrifício de dezenas de milhões de seres aos novos ídolos da raça, da nação, da classe e do progresso, ou ainda as hecatombes ordinárias e extraordinárias da nossa civilização de que fala Michel Serres nas suas Statues, desde os acidentes rodoviários à explosão do vaivém espacial Challender.
Mas a morte de Luís XVI pode ser encarada de uma forma totalmente oposta ao sacrifício neo-pagão que os revolucionários vêem nele, quer dizer, como uma figura do sacrifício cristão, não sendo as duas leituras forçosamente contraditórias. Já Sansão e Edgeworth tinham entrevisto o significado cristológico da morte de Luís XVi: «[O rei] suportou tudo isto com sangue-frio e uma firmeza que nos deixou surpreendidos. Continuo muito convencido de que tinha haurido esta firmeza nos princípios da religião de que ninguém mais do que ele parecia penetrado e persuadido.» paul e Pierrette Girault de Coursac esboçaram deste modo um paralelo entre a morte do rei de França e certas cenas da Paixão. Jesus foi condenado à morte pelos fariseus que seguiram o conselho do sumo-sacerdote Caifás: «Convém-vos que morra um só homem pelo povo para que não pereça toda a nação» (Jo 11, 49). Luís XVI foi condenado À morte para o bem da República: «Luís XVI deve morrer para que a pátria viva» (Robespierre). Foi conduzido ao cadafalso como jesus À cruz. Os soldados apoderaram-se de Jesus para lhe amarrarem as mãos: «O tribuno e os seus ajudantes apoderaram-se de Jesus e ligaram-lhe as mãos» (Jo 28,12). Tambémm a Luís XVI ligaram as mãos. Jesus, sobre a cruz, implorou o perdão de Deus: «Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Também Luís XVI foi o primeiro a perdoar ao «povo que estão a extraviar». «Os Franceses são bem desventurados por se deixaram assim enganar.» Depois, antes de subir para a guilhotina, teve estas palavras: «Peço a Deus que o sangue que ides derramar nunca caia sobre a França.» Os soldados, depois da morte de Jesus, «tomaram as suas vestes e dividiram-nas em quatro partes, uma para cada soldado» (Jo 19,23). Também a multidão partilhou o vestuário de Luís XVI depois da sua decapitação. A multidão que assistiu à morte de Jesus assumiu a sua responsabilidade: «E todo o povo respondeu: "Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos"» (Mt 27,24). De igual modo os republicanos: «Um cidadão sobe para a guilhotina, mergulha o braço no sangue, apanha uma mão-cheia de coágulos e asperge por três vezes a multidão dos assistentes que recebem, cada um deles, uma gota sobre a testa: "Irmãos, ameaçaram-nos de que o sangue de Luís Capeto cairia sobre as nossas cabeças: pois bem, que ele caia; Luís Capeto lavou tantas vezes as mãos no nosso! Republicanos, o sangue de um rei traz felicidade".» O que recorda igualmente a teologia paulina da epístola aos Hebreus: «Segundo a Lei, quase tudo é purificado pelo sangue, e sem efusão de sangue não há remissão» (HEb 9,22). Depois da morte de Jesus, «toda a multidão [...] se foi embora batendo no peito» (Lc 23,48). Da mesma maneira, Paris ficou em estado de choque. Finalmente, o dia da morte de Luís XVI, 21 de Janeiro, é também o dia da festa de Santa Inês, nome cuja origem vem desse meigo animal que é o cordeiro. Este paralelo revela talvez a verdadeira personalidade de Luís XVI: cordeiro destinado ao sacrifício. A sua repugnância, ou, mais precisamente, a sua incapacidade para fazer verter sangue, a sua pretensa fraqueza, não eram mais do que a expressão de uma profunda humanidade, que contrasta tão vivamente com a frieza rectilínea dos revolucionários jacobinos.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

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