segunda-feira, 15 de agosto de 2011

«Liberdade, Igualdade,Fraternidade» Ou a impossiblidade de ser Filho pt 5

Senhor, derrubai os tiranos e elevai os humildes, Ámen!

TERÁ O AMOR ALGO A VER COM O POLÍTICO?

O político não é somente a disciplina dos direitos, tem também alguma coisa a ver com a obediência e o serviço. Ora, não se pode servir e obedecer livremente senão quando se ama. O amor é a base essencial do político, como o é de toda a vida do homem.
A recusa do amor filial não faz o amor desertar do político, limita-se apenas a metamorfoseá-lo e caricaturá-lo. Tendo a natureza humana horror ao vazio, o culto do herói veio substituir o amor ao rei.
Gilles, o jovem fascista de Drieu la Rochelle, exclamava: «Nós, jovens, devemos desconfiar de tudo, nós que estamos prontos a tudo amar.» Uma vez que é preciso amar, porque não podemos deixar de amar, uma vez que o amor foi expulso do político e substituído pela sociologia, teremos de amar todos os que se ergueram acima das massas indistintas. Começa então a longa sequência dos «heróis»: Hitler, Estaline, Mao... Depois das suas entrevistas com Hitler, Goebbels termina frequentemente o seu diário com este grito saído do coração: «Meu Deus, como eu amo este homem.» No dia seguinte à morte de José Estaline, o jornal L'Humanité titulava: «O homem que mais amávamos.» Este fascínio pelo nazismo não abandonou os nossos contemporâneos, como se ele fosse ainda o regime inultrapassado da modernidade política. Filho da democracia, o nazismo continua a constituir ainda hoje uma obsessão e um receio porque as nossas democracias não mudaram em relação ao que eram antes da guerra. Para que o nazismo já não seja a forma mais acabada do modernismo político, vai ser necessário que a democracia deixe de o engendrar.
Todos os heróis modernos em política reivindicaram o título de pai: Estaline era o Paizinho dos pobres; Hitler e Mussolini são pastores e Mao um Grande Timoneiro. Mas, visto que não se chega ao Pai senão pelo Filho e no Espírito, aceder aos pais políticos sem passar por eles traz forçosamente consigo o culto. O culto da personalidade só é próprio de órfãos.
Como sempre, não são as obras de filosofia política ou de sociologia que nos permitem aproximarmo-nos da verdade, mas o mito, a ficção, o romance que fazem as vezes de rosto da verdade do político. Ora, uma das mais belas figuras, um dos mais belos rostos, a imagem e a metáfora política mais conseguida deste últimos anos foi-nos proporcionada através do Senhor dos Anéis de J. R. Tolkien. Nesta obra, uma comunidade heteróclita (é composta de hobbits, de humanos, de elfos e anões) toma forma À volta de um projecto (destruir um anel que confere um poder total sobre o mundo). Apenas um é capaz de se desempenhar desta tarefa: o Hobbit Frodon. Ao longo das 1500 páginas em que se desenrola esta história, vemos o combate e a dor deste herói e o amor do leitor por ele, muito naturalmente, aumenta a ponto de querer partilhar o seu combate e a sua dor. Mas o culto revela-se impossível porque não é tanto a pessoa que é amada, mas o seu combate que é partilhado. Depois de um episódio particularmente emocionante (um dos membros da comunidade tenta tirar à força o anel a Frodon), o herói propõe dar o anel ao filho do rei. Frodon pensa que é ao rei que muito naturalmente pertence a omnipotência sobre o mundo. Ora, o filho do rei é depositário do poder sobre um reino e não da omnipotência sobre o mundo. O herdeiro sabe diferenciar o poder do domínio e ajuda o herói a destruir o anel.
A articulação entre o poder do herói, o poder do rei e o do anel permite colocar nos respectivos lugares os elementos de toda a política.
No final do romance, o filho do rei é coroado, o poder pertence-lhe por direito e o herói, ferido pela tarefa levada a cabo, deixa o mundo.
Cada um desempenhou o seu papel e no seu próprio lugar: o herói é herói e não rei, é por isso que ele deve abandonar o mundo a fim de que o rei reine e para evitar que surja um culto do herói.
O herói Frodon não tem filhos, mas é acompanhado por três outros hobbits, da mesma geração do que ele, que partilham o seu combate e as suas alegrias. Em troca, o rei, ao mesmo tempo que cinge a coroa, casa-se e assegura a descendência. Herói geracional, rei paternal.
Refundar a política sobre o amor não consiste em recusar-se a amar os heróis, mas em saber discernir que o herói é aquele que confia o poder a quem tem a legitimidade para o receber. Toda a autoridade vem de Deus. Ele dá e é este dom que convém amar.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

«Liberdade, Igualdade,Fraternidade» Ou a impossiblidade de ser Filho pt 4

Senhor, revela o teu amor aos que crêem em vós, Ámen!

FRATERNIDADE

Quem diz fraternidade diz forçosamente parentalidade comum. Não há dúvida de que é necessário que exista uma origem comum (ou pelo menos começo comum) para que haja elo fraternal. Ora, a República Francesa, ao negar o Pai dos Céus, ao guilhotinar o pai da nação, terá de ir encontrar noutro lado uma origem comum, com o risco de ter de a inventar. Será uma mãe, a pátria ou, melhor dito, a matria que gera e alimenta os seus filhos. Enquanto que a nação exista na pessoa do pai que lhe conferia a sua coerência, a pátria existe em função dos seus filhos, mãe possessiva que os dá À luz e os sufoca. Eles mesmo deverão estar prontos a morrer para a defender. Ora, não se dá a vida senão por amor e não se ama senão uma pessoa. Começa então a personificação da matria, o seu antropomorfismo: ela toma os traços de uma mulher generosa a quem se dá o nome de Marianne, uma invasão do solo passa a ser a violação da mãe-pátria que deverá ser vingada segundo as leis de sangue. Mas quanto a viver, trata-se antes de morrer: a única fraternidade proposta sela-se no levantamento em massa, na conscrição. Os filhos («Allons, efants de la patrie») só existem porque partem para a guerra. A fraternidade só é possível em fraternidade de armas.
Por muito que Marianne tenha representada generosa, com belos seios alimentícios, transformar-se-á com o passar dos anos em Medeia, mãe indigna que mato os seus filhos. A mãe que alimenta transformou-se num ogre. Quem ainda se atreve a dizer que morreria por ela?
No entanto, esta fraternidade nacional funcionou durante um certo tempo, teria mesmo continuado a funcionar se não tivesse existido, na origem, um vício de forma que torna impossível esta ficção. A ficção advém da decisão arbitrária de escolher o seu progenitor ou a sua progenitora. A tensão natural da República em relação ao universal permitiu, ao longo da história, substituir a nação pela Europa enquanto aguardava uma nova identidade, ainda mais vasta, ainda mais universal. Esta expansão para o universal onde o particular é apenas transitório (era necessário batermo-nos pela França); hoje, já não é necessário batermo-nos pela França mas pela Europa, enquanto aguardamos que nos digam que já não será preciso batermo-nos pela Europa, mas por...?), é a fuga permanente para diante do projecto republicano. De fraternidade nacional, foi portanto necessário passar a uma fraternidade cidadã, mais fluída, ilimitada.
Quando Alain Badiou, o mais republicano e o mais universal dos nossos filósofos, opõe singularidade universal e comunidade, propõe ao indivíduo estar só face ao universo, sem nenhuma possibilidade intermédia. Ora, se existe uma fraternidade universal, aquela que nos fez filho e filha de um mesmo Pai dos Céus, esta inscreve-se em comunidades particulares, em fraternidades particulares, Alain Badiou recusa a encarnação e deixa o indivíduo, como um cosmonauta que, num universo sideral, negro e frio, se teria desligado do cordão que o ligava ao vaivém espacial. Não propõe ao homem senão um destino, que se perca no universo.
Hoje, ao negar a origem comum (a mãe-pátria já não tem qualquer sucesso junto dos republicanos), a República insistiu em manter a fraternidade, mas no sentido de solidariedade. Esta, puramente abstracta, uma vez que não assenta sobre qualquer laço real, propõe então abrir esta solidariedade a todos. Mas, neste universo abstracto, já não há súbditos (que são no entanto aqueles sobre os quais se podem efectivar reivindicações), já não há mais do que seres vivos que reclamam direitos de seres vivos. Ora o direito dos seres vivos exprime-se hoje de duas maneiras: a segurança do risco zero e o direito à felicidade: «Tomado na sua dimensão de ser vivo, o indivíduo tem menos direitos e deveres do que pontos de vulnerabilidade a segurar e capacidades de realização e de satisfação a optimizar.» Encontramo-nos portanto no melhor dos mundos onde, ao ter apagado toda a dimensão do súbdito dependente de alguém que lhe confere um direito, não restam senão vivos que reclamam direitos que ninguém lhes pode dar.
O mundo do Ancien Régime conhecia a fraternidade e são, muito curiosamente, os autores marxistas, que melhor nos explicam como estas fraternidades medievais funcionavam, porque as suas análises socioeconómicas permitem descrever com precisão estes laços de solidariedade:

As massas rurais, com todas as condições jurídicas confundidas (homens livres, escravos, dependentes..), viviam certamente em condições medíocres, à mercê de crises de subsistência, geradoras de penúria e por vezes de fomes assustadoras. Mas estes fenómenos atingiam a sociedade rural no seu conjunto, uma sociedade pouco diferenciada no plano económico. Naturalmente, apresentavam-se casos de pauperização de famílias rurais ligados, quer à doença, quer à pressão que os poderosos exerciam sobre elas. Estes choques eram amortecidos pelas solidariedades locais (família, comunidades rurais, Igrejas) e, quaisquer que fossem as situações, não desembocavam na constituição de um extracto social particular dos pobres, caracterizados por um estilo de vida.

O proletariado nasce da constituição das primeiras cidades. Os servos libertos acorrem às cidades em busca de trabalho. Os mais afortunados podem entrar para confrarias de ofícios onde encontram uma solidariedade económica, social, cultural e política. Mas nem todos os servos libertos encontram trabalho. Assim se constitui uma classe pobre que se torna, para os burgueses, uma classe perigosa e para a Igreja uma população a ajudar:

De uma maneira mais geral, [os pobres] beneficiam desta «revolução da caridade» que se insere nos grandes movimentos espirituais e institucionais (designadamente a reforma Gregoriana) dos séculos XI e XII. A catequese focaliza-se sobre a acção caritativa. Entre 1150 e 1300, é edificada uma vasta rede de hospitais e instituições de caridade... Em resumo, o sistema feudal produziu simultaneamente as suas cortes de pobres e as redes de protecção que os mantinham em contracto com todos os outros.»

Deste modo, a interpretação marxista mostra como a sociedade feudal e em seguida a pós-feudal é capaz de se adaptar às transformações e perturbações sociais e permitiu introduzir por efeito da fraternidade o elemento solidário.
De facto, todas estas fraternidades particulares (corporações de ofícios, associações de trabalho e de ajuda mútua, confrarias pias, fraternidade caritativas, ordens religiosas...) funcionavam segundo estatutos políticos muito precisos e rigorosos , tendo dado muitas vezes provas de democracia real (com eleições como modus operandi mas que não esquecia a fonte principal) durante séculos. «Avoir voix au chapitre»* é uma expressão do mais elementar e do mais eficaz funcionamente democrático. Ao diluir as fraternidades particulares numa fraternidade universal, mais ninguém pode ter «voto no capítulo» porque não existe «capítulo» universal. Os únicos votos que a fraternidade universal autoriza são os contados nas urnas. Deste modo, uma voz já não se faz ouvir, um homem deixa de falar, conta-se apenas o seu voto. Já não estamos mais no âmbito do acto de falar, estamos no da linguagem matemática. A uma democracia baseada na palavra como acto substitui-se uma democracia baseada sobre a contagem dos códigos (não sendo as sondagens mais do que tentativas desesperadas de conhecer o que os códigos querem dizer).
Foi uma lei revolucionária (a Lei Le Chapelier de 14 de Junho de 1791) que aboliu as corporações, as associações de trabalho e de ajuda mútua, as assembleias de camponeses e de operários. Em 13 de Fevereiro de 1790, uma outra lei tinha abolido os votos religiosos. Esvaziando assim a noção de fraternidade das noções do corpo comum, de carne e de encarnação, de língua e de história comuns, os revolucionários aboliram a possibilidade de uma verdadeira democracia. É no momento em que os republicanos propunham a fraternidade como projecto político que eles aboliam as condições possíveis da sua aplicação.
Os mais pessimistas dos hermeneutas da divisa revolucionária explicam que a fraternidade representa a palavra que permite fazer a articulação entre as duas outras palavras, antagonistas da divisa. Inclinando-se a liberdade para a direita e a igualdade para a esquerda, a única maneira de dilacerar a nação eterna guerra civil é a de superar os defeitos da direita e da esquerda por meio da fraternidade. Na altura de fazer o balanço, podemos dizer que mesmo élan nacional, as únicas vezes em que a liberdade e a igualdade emudeceram para deixar a fraternidade falar, foram os momentos em que se estava em guerra. Foi apenas na lama e no sangue que a nação quis que os homens fossem irmãos.



*Um expressão Francesa, que em Português equivale à expressão «Ter voto na matéria»


Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

domingo, 31 de julho de 2011

«Liberdade, Igualdade,Fraternidade» Ou a impossiblidade de ser Filho pt 3

Da nossa dor Senhor, afastai o ódio ensinando-nos a ser misericordiosos, Ámen!

LIBERDADE

A melhor descrição de liberdade, pensada pelos modernos e aplicada pela Revolução Francesa, encontra-se, sem dúvida, na obra de Simone de Beauvioir, Pour une Morale de L'Ambiguité. Neste livro, onde a autora tenta honestamente fundar uma moral baseada sobre a liberdade, vejamos como ela descreve esta última: «[...] pretender o desvendar do mundo, querer-se livre, constitui um só e único movimento. A liberdade é a fonte de onde surgem todas as significações e todos os valores; é a condição original de qualquer justificação de existência; o homem que procura justificar a sua vida deve querer antes de mais e absolutamente a própria liberdade.»
Estabelecer, como faz Simone de Beauvoir, a liberdade como fonte de toda a moral, é propor que a vida humana se assemelhe a esses parafusos sem princípio nem fim que giram indefinidamente e cuja própria visão provoca vertigem, já que o olhar não pode deter-se sobre coisa alguma, pois a curva é contínua, mas não conduz a lado algum. Mesmo que mais adiante, na sua obra, a autora esteja bem ciente do risco e recuse a ideia de que a liberdade seja «este átomo epicurista que deriv[a]. não importa em que momento, não importa em que direcção», não impede que, se nada fundamenta a liberdade, ela não pode, portanto ter outras finalidades que não sejam ela mesmo.
Ao decretar legislativamente que os homens nasciam livres por natureza e por direito, os revolucionários fantasiaram a natureza e atribuíram ao direito o que ele não pode fazer.
Apenas se é livre por dom e engana-se aquele que está convencido de que pode garantir a perenidade de um dom decretando que ele é natural ou proclamando o direito a ele. Um dom é muito mais perene do que a natureza (que dá e torna a tirar, a começar pelo primeiro dos seus dons que é a vida); quanto ao direito escrito, um outro escrito pode anulá-lo, aí reside toda a sua fraqueza. O que existe pelo escrito pode cessar de existir por meio de uma outro escrito. Em contrapartida, o que é dado não pode retomado, visto que o dom é uma extensão de si mesmo que nunca pode ser recuperada. Se Deus nos criou livres, é porque Ele mesmo se deu e não pode retomar-se sem nos destruir e sem se destruir.
Se os homens nascem livres, é porque isso se faria naturalmente e é, portanto contraditório decretá-lo por escrito. O que é escrito é justamente o que não é natural e tem necessidade desse escrito para existir.
Ao confundir e misturar as liberdades públicas (que existiam sob a realeza e de que o rei era o garante, pois que elas dependiam de ele manter a sua palavra, muito mais sólida do que o escrito) e a liberdade pessoal (cujo centro é a minha consciência), os revolucionários correram o risco de que elas se contradigam uma à outra e se impeçam de funcionar.
É o meu pai que me ensina a liberdade individual (em nenhum lado isto está escrito e todavia, desde a noite dos tempos, é assim) e é o rei que garante as liberdades públicas.
Foi um dos primeiros pensadores contra-revolucionários , Joseph de Maistre, que viu imediatamente que o problema da Revolução consistia no problema do escrito:

Quanto àquele que empreende escrever leis ou constituições civis, e que julga que, porque as escreveu, pôde conferir-lhes a evidência e a estabilidade adequadas, quem quer que seja este homem, particular ou legislador, e que o digam ou não, fica desonrado, porque, dessa maneira, prova que ignora igualmente o que é a inspiração e o delírio, o justo e o injusto, o bem e o mal: ora, esta ignorância é uma ignomínia, ainda que toda a massa do vulgo aplaudisse.

Regressa agora à questão dos começos e das origens:

Toda a instituição falsa escreve muito, porque sente a sua fraqueza, e procura apoiar-se [...], nenhuma instituição grande e real poderia estar fundada sobre uma lei escrita, já que os próprios homens, instrumentos sucessivos da instituição, ignoram aquilo em que deve tornar-se, e que o crescimento imperceptível é o verdadeiro sinal da duração, em todas as ordens possíveis de coisas.

A actual inflação legislativa, em que as leis se sucedem às leis que nem mesmo tempo têm tempo de serem regulamentadas antes de serem anuladas por outras leis, constitui a prova de que até os legisladores já não acreditam naquilo que fazem.
O meu pai ensina-me a educar a minha consciência de homem livre. É ele que me faz entrar no mundo dos homens onde devo aprender a discernir o bem e o mal porque a liberdade é em primeiro lugar e antes de tudo a capacidade de, no momento crucial, dizer «sim» ou «não».
Desde sempre e em todos os tempos, homens e mulheres devem ter dito, e deverão dizer, «não» ou «sim» quando tudo à sua volta conspira para que se calem. Sob a pior das ditaduras ou sob o regime mais liberal, ninguém está exonerado do dever de se pronunciar a título pessoal.
O grave erro da teoria da liberdade republicana é o de ter feito crer um regime de liberdades públicas (que se assemelha muito a este programa: «Nós ocupamo-nos de tudo, inclusivamente da vossa liberdade») possa instaurar a liberdade.
A liberdade é eminentemente pessoal e árdua. Ela é jorro intempestivo. Não se exerce senão para cada um e em momentos específicos. O homem deve fazer raramente prova de liberdade mas, quando tem de o fazer não deve desperdiçar essa oportunidade. Quando Jean-Paul Sartre escrevia: «Nunca fomos mais livres do que quando estivemos sob a ocupação Alemã», explicava bem que a liberdade apenas se pode exercer face àquilo que a nega. Não existem países livres e países «não livres», somente os homens o são, ou não. Foi preciso uma grave ignorância do que é a liberdade neste mundo que se diz «livre» para ousar uma tal pretensão.
A ideia, segundo a qual um regime de liberdades públicas protege a liberdade individual, é um logro, não pode senão eventualmente garantir contratos que liguem os homens entre eles. Uma liberdade conquista-se é nisso que consiste a sua própria essência. Pretender proteger a liberdade individual é aniquilá-la.
Há por detrás desta ideia de regime de liberdades públicas a ideia do progresso moral da humanidade e por conseguinte a negação da possibilidade do mal. Todo o mal não é senão um defeito que se vai poder erradicar por meio da educação ou da ciência que o Estado se encarrega de proporcionar a cada um. Tudo é susceptível de ser melhorado. O progresso vai balizar o progresso moral (e ainda menos político) na história da humanidade. Este desconhecimento do mal, esta recusa em reconhecer que cada homem cada mulher terá de lutar até ao fim dos tempos contra os mesmo - exactamente os mesmos - males que os seus antepassados, conduziu ao inferno esta humanidade liberta.
O rei não era o garante da liberdade do homem (não tinha essa omnipotência), mas garantia as liberdades públicas, as que permitiam o viver em comum numa negociação constante entre os súbditos.
«Súbdito» não significa apenas «submisso», mas significa também «existir graças a e por um outro». Existir graças a, é existir por dom. O termo «súbdito» não foi, politicamente, lido senão em termos de submissão. Ora existe um outro elemento nesta palavra, que é este outro ao qual eu estou submetido. Um súbdito político existe porque um outro existe e, mais ainda, esse outro preocupa-se comigo e talvez queira mesmo que eu exista pessoalmente e politicamente. O súbdito político existe porque alguém, além dele, o deseja. Ser um súbdito político significa, pois, existir politicamente pela vontade de um mais forte e de uma mais poderoso e que este poder não serve em primeiro lugar para negar a existência do mais fraco, mas, antes para lhe conferir a existência política. O que a República recusou foi o dom da graça da existência política. Mas, ao recusá-lo, criou cidadãos que apenas existem pelo facto de estarem ali. Postados. Sem qualquer justificação. Um cidadão está portanto ali postado, tal como o está um chinquilho num jogo, a igual distância dos outros chinquilhos a ponto de uma máquina poder encarregar-se de os deslocar, de os levantar ou de os mudar de lugar. Já não é necessária a vontade humana nas relações dos chinquilhos entre eles.
Um súbdito, diversamente do chinquilho, nunca é anónimo, nunca é idêntico a um outro, porque ele existe por uma vontade humana. E compete a esta fonte garantir a minha liberdade pública, protegê-la e ser essa terceira pessoa que fará justiça quando ela for ameaçada.
No nosso sistema político actual em que conferimos a nós mesmos a nossa liberdade (tanto a liberdade interior como a liberdade política), que vale esta liberdade? Como posso ser eu mesmo o garante da minha própria liberdade? Que valor tem esta liberdade senão a própria liberdade que me dou a mim mesmo? Como posso conhecer o meu valor, e por conseguinte a minha liberdade, se mais ninguém além de mim a revela e me chama a ela?
E, finalmente, que relação mantenho com os outros, livres como eu? Se a minha liberdade me é atribuída por mim mesmo e se o meu próximo faz o mesmo que eu, é inevitável o entrechoque das liberdades ao ponto de reduzir a lei e o direito a esta falsa doutrina dotada de um falso bom senso: «A minha liberdade pára onde começa a de outro.» Que pobre liberdade, que mediocridade, que mesquinhez, que baixeza, quando a minha liberdade é tornar o outro ainda mais livre do que eu, lembrando-lhe quem lha conferiu. Não existe constrangimento entre as liberdades dos homens, mas sim comunicação mútua e interpelação constante.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande «

segunda-feira, 18 de julho de 2011

«Liberdade, Igualdade,Fraternidade» Ou a impossiblidade de ser Filho pt 2

Senhor, aquecei os nossos corações, Ámen!

IGUALDADE

Em 28 de Setembro de 11791, um decreto da Assembleia Nacional Constituinte permitia a todos os judeus, vivendo no território francês, tornaram-se cidadãos franceses. Decreto de emancipação. Decreto de assimilação. Decreto de igualdade, de semelhança. Decreto de desaparição.
Por este acto, a Revolução Francesa fez o oposto de um acto político precedente no qual toda a história tinha encontrado a sua fonte, um decreto vindo do próprio Deus: «Eu vi a miséria do meu povo no Egipto e ouvi-o lamentar-se [...]. Eu desci para o livrar das mãos dos Egípcios (Ex 3, 7-8). Deus criou todos os homens no mesmo élan de amor, mas a história destes homens levou-o a fazer uma escolha. Esta escolha não comportava qualquer concessão, era radical e definitiva.
Radical, porque Yahvé não é um árbitro que considere todas as coisas em igualdade, toma a defesa, empenha-se e escolhe o seu campo. O Senhor conduz uma guerra e utiliza os procedimentos que escandalizam: «Yahvé endureceu o coração do Faraó» (Ex 14, 8). Acto incompreensível no nosso tempo de consenso em que se sonha com uma humanidade sem combatentes e de um Deus sem aspereza. Ora, Deus não é um árbitro, é um criador que ama e que se compromete por e nesse mesmo amor. Ele, origem de todas as coisas, escolhe o seu campo, conduz uma guerra quando é necessário, para defender aquele que tem necessidade de ser defendido.
Escolha definitiva porque o amor não se nega nunca (na política como fora dela). Se Deus fez esta escolha de amar Israel mais do que ao Egipto, esta escolha impõe-se a todos, inclusive a todos aqueles que não fazem parte desta eleição, não porque dela sejam excluídos mas, ao contrário, porque também são implicados nesse decreto divino, por essa revelação divina que nos diz a nós alguma coisa sobre o seu amor. A consequência desta eleição dos judeus não é exclusão daqueles que não são judeus porque Yahvé escolheu o povo hebreu para guiar as outras nações: «Sou eu Yavhé [...] Destinei-te a ser aliança do povo, a ser a luz das nações» (IS 42, 6).
Todo o acto político deve encontrar a sua fonte neste acto divino. Todo o acto político é um acto de amor, uma escolha preferencial.
Ora, ao escolher a igualdade para os judeus (e portanto recusando reconhecer-lhes este lugar à parte que Deus lhe conferiu), os revolucionários franceses recusam uma escolha política baseada no amor em benefício de uma natureza humana convertida, sem distância, em direito: os judeus são homens como os outros, portanto cidadãos como os outros. Os judeus devem ser como os outros, tal como propunha o abade Grégoire, em 1788, com o seu Essai sur la Régénération Physique, Morale et Politique des Juifs.
Porque os judeus não puderam entrar À força nessa semelhança que lhes apresentavam: «Tentámos lealmente, em todo o lado, fundir-nos com as colectividades nacionais que nos rodeiam, salvaguardando apenas a fé dos nossos pais... em vão somos patriotas fiéis, até mesmo em certos países patriotas exuberantes; em vão consentimos nos mesmo sacrifícios em dinheiro e em sangue que os nossos concidadãos; em vão nos esforçamos por exaltar a glória das nossas pátrias respectivas no campo das artes e da ciências, e em aumentar as suas riquezas por meio do comércio e das trocas..», nós sabemos como foi resolvida esta impossibilidade da igualdade 150 anos mais tarde.
Uma vez que não puderam ser como os outros, era pois necessária fazer desaparecer fisicamente os judeus, única maneira de criar uma verdadeira igualdade entre os homens. E assim, o projecto político da igualdade irá desembocar na pior das barbáries. O que os revolucionários quiseram fazer (fazer desaparecer os judeus), Hitler consegui-o na Europa. A restrição de Hezrl («a fé dos nossos pais»), que não lhe parece ser mais do que um detalhe, constitui, de facto, a chave da impossibilidade da assimilação. Enquanto se pedia aos outros povos franceses (Bretões ou Borgonheses) para se desprenderem dos privilégios ligados Às suas terras (o que era aceitável para eles, já que este mesmo território passava a fazer parte do único território nacional), os judeus não podiam desprender-se de nada (a terra de um gueto não é uma terra). Eles deveriam ter vendido ao desbarato o que os fazia judeus, mas não se vende ao desbarato a fé dos seus pais.
Foi porque os judeus foram capazes de manter a filiação no cerne das suas vidas («a fé dos nossos pais») que eles não podem ser assimilados por um mundo em que as gerações passaram a ser espontâneas. Mas aqui a filiação não se equipara à genealogia, os próprios pais são referidos a outra coisa para não dizer a Alguém.
Não é apenas porque tinha nascido do seu pai que o rei reinava, isso não era senão o modus operandi da transmissão política. O modus operandi mais banal, mais frágil, o menos meritório possível e é por isso que ele constituía o único poder possível e legítimo, pois ninguém podia orgulhar-se de ser a origem dele. Mas o dom do poder dependia de uma escolha superior, da mesma ordem do que o do povo hebreu contra o povo do Egipto. Esta escolha superior era um decreto divino a que era necessário dar assentimento.
Ao recusar simultaneamente a fonte de origem do poder e o modus operandi do nascimento, os nossos contemporâneos obrigam-se, portanto, a encontrar em si próprios, e em cada geração, as razões de exercer este poder. Encontram-se então condenados a uma eterna autojustificação do poder que exercem. São obrigados a escolher, eles mesmos, o seu próprio nascimento. O modo geracional (somos mais os filhos do nosso tempo do que os filhos dos nossos pais) é concomitante À Revolução Francesa. É por isso que era necessário que o rei morresse, mas também o seu filho, a fim de que não houvesse mais filiação.
A partir da Revolução, deixámos de ser os filhos dos nossos pais, somos da mesma geração. Tentamos encontrar por nós mesmos razões de existe pelo facto de que nascemos ao mesmo tempo. O tempo engendra-nos mais do que os nossos pais o fizeram. A primeira dessas gerações foi a geração romântica, a última foi a geração de 68 (entre elas, alternam-se dois tipos de geração, uma geração dos fundadores e uma geração sacrificada). Exit o nascimento, não existimos senão por bloco geracional. Ora uma geração não cria irmãos, cria indivíduos justapostos que passarão o seu tempo a tentar compreender o que os liga a esses outros indivíduos, que não são os seus irmãos, nem os seus pais, de quem todavia nasceram. É o princípio dos sinais dos tempos. À falta dos nossos pais, fala-nos o tempo e é necessário, segundo a expressão canonizada mesmo pela Igreja Católica, «ler os sinais dos tempos».
Nesta história, onde as gerações se sucedem diferenciando-se, cada uma de entre elas, num movimento que ela acredita ser generoso, quer que a seguinte seja composta não por herdeiros, mas por fundadores. Cada geração política quer que a segunda recrie o mundo. Grito desesperado dos pais que se apercebem de que não conseguiram de maneira alguma transmitir mais do que o vazio e o caos.
Cada sucessão de gerações sem herança possível não deixa qualquer possibilidade de escolha: por conseguinte, trata-se apenas de apressar a catástrofe, visto que nada é transmissível: desde os fascistas dos anos de 1930 à esquerda radical deste começo de milénio, trata-se realmente disso: apressar a catástrofe porque nada recebemos e nada podemos transmitir.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

segunda-feira, 11 de julho de 2011

«Liberdade, Igualdade,Fraternidade» Ou a impossiblidade de ser Filho pt 1

Senhor aumentai os frutos do nosso trabalho, Ámen!

Não consegui deixar de postar mais alguns textos do «Livro Negro da Revolução Francesa», porque são de facto tentativas de análises profundas que têm em conta as estruturas mentais históricas que foram criadas ou existem ao longo dos séculos e evoluem de forma muito lenta e ao contrário das análises superficiais, entendem a importância destas estrutura para o próprio sustentação de qualquer conjuntura política, e especialmente são o fundamento de uma civilização..

Bom vamos ao texto..

Algo na Revolução Francesa encontra a sua fonte no espírito cristão. A fraternidade - «Todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão» (Mc 3, 35) -, a liberdade - «A verdade vos libertará» (Jo 8, 32) -, a igualdade - «já não há escravo nem homem livre» (Gal 3, 28) fazem parte, desde há séculos, da tradição cristã até ao ponto de esta Revolução, antes da viragem do Terror, suscitar o entusiasmo de numerosos eclesiásticos. O irmão dominicano Henri-Dominique Lacordaire, alguns anos depois dela, defendida ainda a compatibilidade entre a divisa republicana francesa e o espírito cristão até que se deu conta da utilização perversa das palavras cristãs pela República. É assim que ele, o arauto dos católicos liberais, o reconciliador da Igreja e do século, recorda em 1848 aos defensores do liberalismo que «entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o patrão e o escravo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta.»
E, de facto, duzentos anos mais tarde, o balanço político da divisa republicana não é bom: é falso no que respeita à liberdade, catastrófico quanto à igualdade e enganoso para a fraternidade. O que é que se passou então? Teria havido somente atraso na aplicação deste programa, como sublinham os republicanos que parece estarem de boa-fé? Ou então, a perversão dos valores cristãos ter-se-ia revelado inerente à antropologia dos revolucionários.
Enquanto se reclamavam dos valores evangélicos, os revolucionários, ao expulsarem Deus, separaram-se da fonte sem a qual não se podem reconhecer os frutos. Por isso, uma liberdade que não é outorgada por um Pai é um movimento incoerente; uma igualdade que não reconhece a escolha preferencial de uma amor é enganosa e uma fraternidade que se auto-proclame sem referência a uma origem comum é, muito simplesmente, falsa.
Querer matar o Pai pretendendo ao mesmo tempo guardar os valores legados por ele, é impossível.
A França esperava da celebração do bicentenário da Revolução um verdadeiro balanço político; não tivemos senão uma auto-celebração que escondia mal a recusa de olhar a realidade política de frente. Portanto, impõe-se hoje tentar compreender os fundamentos antropológicos da monarquia e da república, a fim de fazer um honesto inventário da situação política em França. Do lado da monarquia, há duas maneiras de militar: a primeira por pura nostalgia (é esta muitas vezes a postura de uma aristocracia que, pela sua atitude irresponsável, tem alguma coisa a ver com o fracasso da monarquia); a segunda consiste em recordar que há, na prática da filiação monárquica, um princípio de que o político não pode prescindir, correndo o risco de conduzir o mundo às portas do caos. Quanto ao republicanos, sem nos dizerem qual é o homem em que acreditam e a que aspiram, não podem fazer compreender o que se sinta por trás destas três palavras sésamo (liberdade, igualdade, fraternidade) que se pretende abrirem a porta à felicidade.
Começaremos este estudo pela igualdade, porque nela reside o pecado original de toda a divisa. O desconhecimento da liberdade e da fraternidade encontra a sua fonte nessa falsa concepção da igualdade.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande

domingo, 19 de junho de 2011

Do deserto jorra uma Fonte

Senhor!

Nestes últimos meses pus-me a postar textos do Livro Negro da Revolução Francesa, um livro escrito por vários especialistas e professores universitários e no qual recomendo. O antigo regime colapsou, nasceu uma nova religião, mudaram-se os tempos e foram ressuscitadas reminiscências egípcias e babilónicas, por isto tudo, compreende-se que o espírito que animou a Revolução não foram as injustiças materiais, mas foi um espírito religioso anti-católico.. Espero que os textos retirados do livro tenham sido esclarecedores sobre a ruptura ocorrida e que levou ao colapso do antigo regime e do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Para quem ainda não leu e quiser ler basta ir aos postagens anteriores sobre a revolução que começam basicamente em Janeiro, e foram postados à média de 1 por semana, não consigo ter um ritmo maior, devido ao tempo que dedico à universidade e agora entrei em épocas de exames, por isso não sei se conseguirei postar muito mais neste mês.. Este blog foi criado com a intenção, como diz na descrição, de combater o modernismo na sociedade e principalmente na Igreja, era importante para isso que a missa gregoriana conhecida por tridentina, liberada pelo Papa Bento XVI começasse a fazer o seu caminho em Portugal o que infelizmente ainda não aconteceu.. Para isso é preciso haver grupos de fiéis que peça aos Párocos e possa assistir regularmente na mesma região o que também é difícil de reunir.. Como S. Paulo escreve, nós já não vivemos segundo a carne, mas sim segundo o Espírito, por isso devemos sempre dar, iluminar, aquecer mais do que o mundo espera de nós, e também devemos ser vigilantes porque carregámos um tesouro maior do que nós próprios, pois Cristo disse que nós somos Templo de Deus, e não devemos descuidar para não descarrilar neste vale de lágrimas, por isso é nosso dever saber conservar aqui na terra o que nos foi dado do céu. Se nós não cuidámos de nós, ninguém cuidará.. ainda que a fraqueza seja muita, a tristeza inevitável, e o desespero convida-se a entrar no nosso coração, a Fé e a Esperança protegem o nossa mente e coração de qualquer frustração e ressentimento contra as cruzes que carregámos conjuntamente com a Igreja que tarda a iluminar, num mundo sedento de Deus mas que só tem tesouros perecíveis.. Deus retirou da cruz, a salvação, da morte a vida, por isso nos tempos difíceis que correm, principalmente em Portugal com a crise económica, devemos saber meditar como Deus age e pedir-lhe que mais uma vez faça jorrar do deserto dos corações dos homens, rios de abundância e alegria. Pedir a Deus que nos dê ciência, sabedoria e fortaleza para conservar aquilo que nos deu..

sábado, 4 de junho de 2011

Revolução e Antigo Regime part II

Senhor vós sois o Deus dos vivos, não dos mortos, enviai a vossa graça, Ámen!

É este princípio que importa agora descrever. Na teologia política cristã tradicional, datando da época constantiniana, qualquer soberania e qualquer legitimidade política vinha de Deus, e mais precisamente de Jesus Cristo, ao mesmo tempo rei e sacerdote, rei enquanto representando o seu povo junto do Pai, e sacerdote enquanto ofertando ao Pai o seu sacrifício perfeito, porque divino, em reparação dos pecados da humanidade decaída. Ora, os cristãos, pelo sacramento do baptismo, graças ao qual eles se «revestem» de Cristo (Gal 3,29), participam assim da realeza sacerdotal de Cristo; passa-se o mesmo, de maneira plena, com os sacerdotes e os bispos, por efeito de um sacramento especial, mas também com os reis e, muito particularmente, com o rei de França, que beneficiava, desde a sagração de Clóvis em Reims, de uma unção que lembrava a dos antigos reis de Israel e fazia da França a filha primogénita da Igreja. Esta unção fazia do rei o representante de Cristo sobre a Terra, pelo menos no que concernia aos assuntos temporais. nesta qualidade, o rei era teoricamente independente em relação às leis, em virtude da máxima de Ulpiano: princeps legibus solutus est; mas mantinha-se ao mesmo tempo ligado às leis e aos costumes do reino, que a tradição jurídica designava por «constituição francesa», assim como à lei natural. A contradição era geralmente resolvida lembrando o exemplo da submissão voluntária de Cristo à lei, e fazendo do rei (ou o imperador) uma «lei viva» (lex animata). Além disso, a monarquia francesa tinha igualmente a obrigação de respeitar costumes e privilégios. E assim, a verdade é que o rei continuava a representar a fonte de direito. É por este motivo que, em 1787, o próprio Luís XVI poderá replicar ao duque d'Orléans: «É legal porque eu assim o quero.»
Fazendo eco à cristologia paulina, onde Cristo é o esposo e a cabeça da igreja, a teologia e o direito consideravam o rei como esposo da nação, o marido da República, já que esta era tradicionalmente simbolizada por uma figura feminina. Esta relação esponsal, concebida juridicamente como um contrato sinalagmático, impunha ao rei e à nação um determinado número de obrigações. De um modo mais geral, a relação entre o rei e os seus vassalos era concebida sobre um modelo familiar que o próprio Luís XVI reclamava para si mesmo, afirmando que «tudo o que o pai deve ais seus filhos, o irmão aos seus irmãos, o amigo ao seu amigo, o príncipe deve-o aos seus vassalos»; ou ainda: «O rei, o pastor, o pai, é uma só e mesma coisa.» O rei devia-se aos seus vassalos e os vassalos deviam-se ao rei. Luís XVI escrevia assim: «Como nada os [meus povos] pode dispensar, quando eu for injusto ou tirano, de me serem submissos, se por seu lado todos, se por seu lado todos eles violassem os seus deveres para comigo, nada me poderia subtrair à obrigação de cumprir os meus para com eles». Para o rei, isso podia ir precisamente até ao sacrifício. assim, como escreveu um jurista da Idade Média, Aeneas Silvius: «O próprio príncipe, cabeça do corpo místico da respublica, é obrigado a sacrificar a sua vida cada vez que o bem comum o exige.» Do mesmo modo, Luís XVI às delegações dos guardas nacionais, em 13 de Julho de 1790, falando dos franceses: «Dizei-lhes que, se não posso deslocar-me convosco aos seus asilos, quero aí estar pela minha afeição e pelas leis protectoras do fraco, velar por eles, viver para eles, morrer, se for preciso, por eles.» Luís XVI era, aliás, dotado de um carácter profundamente bom, que infelizmente foi assemelhado à fraqueza; esse carácter tinha chamado especialmente a atenção de Benjamin Franklin quando conviveu com ele: «Nenhum soberano que algum dia reinou teve, inegavelmente, mais bondade no seu coração, nem possuiu em maior grau o leite da ternura humana que Luís XVI». Esta qualidade parece de resto ter sido o apanágio da sua linhagem, pois lemos numa carta de John Adams a Thomas Jefferson em 1814: «O leite da ternura humana dos Bourbons confere mais segurança à humanidade do que a ambição desmedida de Napoleão.
De uma maneira geral, o rei de França era a pedra angular de toda a ordem jurídica e social; era também obrigado, pela sua sagração, a ser o protector da Igreja. Neste contexto, o regicídio - no sentido da destruição do princípio real - visava destruir o elo entre o rei e a República, e, por conseguinte, entre Cristo - ou a Igreja - e a França e, consequentemente, destruir toda uma civilização que a pouco e pouco desabrochara e se tinha expandido na Europa ocidental, até mesmo o próprio cristianismo. É, evidentemente, ao espírito da Revolução que se deve imputar o regicídio. Este espírito consiste numa visão do mundo profundamente secularizada, colocando como fundamento da soberania a natureza, em vez de uma divindade revelada. Ele incluiu as Luzes newtonianas, mistura curiosa de cientismo e de esoterismo que se encontra na franco-maçonaria, as Luzes francesas, que não são senão uma adaptação superficial desta últimas ao grande público francês, enxertando-as no jusnaturalismo descristianizado da oposição parlamentar, prevalecente à época nos meios intelectuais.

Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande