Que tudo vá-lhe a pena, porque assim permitiste Senhor, Ámen!
O futuro do ministro da Justiça de Napoleão, Fouché, fala assim de um assustador sacrifício, efectuado ao «imolar o representante da realeza, o pai da monarquia, para edificar uma República». Michelet, aliás hostil ao regícidio, traça um paralelo com os antigos Romanos: «Que fizeram os Romanos para fundar o seu Capitólio e dotá-lo de eternidade? Puseram nos seus alicerces uma cabeça sangrenta, sem dúvida a cabeça de um rei.» Evidentemente, o sacrifício em questão, longe de estabelecer a paz civil, de facto permitiu o Terror e as guerras revolucionárias.
A fundação da República coincide, precisamente, com este impulso messiânico que deve fazer saltar o ferrolho das antigas fronteiras naturais da França e revolucionar o mundo inteiro pelo Terror e pelo sangue. E o sacrifício de Luís XVI, verdadeira declaração de guerra ao mundo antigo, foi o acto que venceu as últimas resistências. Jaurès cita nesse sentido um contemporâneo, um certo Prudhomme, que escreve: «A liberdade assemelha-se a essa divindade dos Antigos, que só podia tornar.se propícia e favorável se lhe fosse oferecida em sacrifício a cabeça de alguém carregado com uma grande culpa. Os druidas prometiam a vitória aos nossos antepassados, que partiam para uma segunda campanha, quando traziam de regresso da primeira uma cabeça coroada sobre o altar do Hércules gaulês.» Michelet pensa da mesma maneira: «Muitos acreditam que não se podia passar a fronteira sem ser sobre o corpo do rei, que era preciso um sacrifício humano, um homem imolado ao Deus das batalhas» (IV, 254). Desaparecido o rei, desapareciam os limites que continham a hubris revolucionária dentro de justos limites, e eis a nova religião lançada à conquista do mundo, jorrando das suas fronteiras para impor ao mundo a sua «nova ordem dos séculos».
O estatuto sacrificial da morte do rei terá também sido notado por um historiador e homem político como Jaurès - que, de resto, na sua Histoire de la Révolution, não pode impedir-se de se imaginar a interceder pelo rei e a arrancar à convenção em lágrimas a sua sobrevivência. Vê-se obrigado a reconhecer na morte de Luís XVI uma «transposição estranha da crença cristã», onde «toda a humanidade se associa à morte daquele que ela faz rei [...]»; por isso «é um ser novo que vai surgir» graças ao sacrifício de Luís XVI, que abre uma «fonte», uma «nascente de sangue e de regeneração: fons lavacri et regenerationis» que serve de nova pia baptismal à civilização que vai nascer. Contudo, uma coisa o deixa perplexo: a «contradição inquietante» imanente à morte de Luís XVI; ela é simultaneamente «sinal de um mundo novo», ateu e democrático, e, ao mesmo tempo, «diga-se no passado à longa cadeia de superstições sangrentas». A contradição desaparece quando se compara sacrifício cristão e pré-cristão; a superação do cristianismo não significando qualquer outra coisa do ponto de vista de uma misteriosa economia espiritual, que o regresso aos sacrifícios pré-cristão; o das pombas e dos touros na Grécia e em Israel, o dos pharmakoi atenienses, o dos milhares de vítimas humanas nos templos azetecas -e, na nossa época, o sacrifício de dezenas de milhões de seres aos novos ídolos da raça, da nação, da classe e do progresso, ou ainda as hecatombes ordinárias e extraordinárias da nossa civilização de que fala Michel Serres nas suas Statues, desde os acidentes rodoviários à explosão do vaivém espacial Challender.
Mas a morte de Luís XVI pode ser encarada de uma forma totalmente oposta ao sacrifício neo-pagão que os revolucionários vêem nele, quer dizer, como uma figura do sacrifício cristão, não sendo as duas leituras forçosamente contraditórias. Já Sansão e Edgeworth tinham entrevisto o significado cristológico da morte de Luís XVi: «[O rei] suportou tudo isto com sangue-frio e uma firmeza que nos deixou surpreendidos. Continuo muito convencido de que tinha haurido esta firmeza nos princípios da religião de que ninguém mais do que ele parecia penetrado e persuadido.» paul e Pierrette Girault de Coursac esboçaram deste modo um paralelo entre a morte do rei de França e certas cenas da Paixão. Jesus foi condenado à morte pelos fariseus que seguiram o conselho do sumo-sacerdote Caifás: «Convém-vos que morra um só homem pelo povo para que não pereça toda a nação» (Jo 11, 49). Luís XVI foi condenado À morte para o bem da República: «Luís XVI deve morrer para que a pátria viva» (Robespierre). Foi conduzido ao cadafalso como jesus À cruz. Os soldados apoderaram-se de Jesus para lhe amarrarem as mãos: «O tribuno e os seus ajudantes apoderaram-se de Jesus e ligaram-lhe as mãos» (Jo 28,12). Tambémm a Luís XVI ligaram as mãos. Jesus, sobre a cruz, implorou o perdão de Deus: «Pai, perdoai-lhes porque eles não sabem o que fazem» (Lc 23,34). Também Luís XVI foi o primeiro a perdoar ao «povo que estão a extraviar». «Os Franceses são bem desventurados por se deixaram assim enganar.» Depois, antes de subir para a guilhotina, teve estas palavras: «Peço a Deus que o sangue que ides derramar nunca caia sobre a França.» Os soldados, depois da morte de Jesus, «tomaram as suas vestes e dividiram-nas em quatro partes, uma para cada soldado» (Jo 19,23). Também a multidão partilhou o vestuário de Luís XVI depois da sua decapitação. A multidão que assistiu à morte de Jesus assumiu a sua responsabilidade: «E todo o povo respondeu: "Que o seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos"» (Mt 27,24). De igual modo os republicanos: «Um cidadão sobe para a guilhotina, mergulha o braço no sangue, apanha uma mão-cheia de coágulos e asperge por três vezes a multidão dos assistentes que recebem, cada um deles, uma gota sobre a testa: "Irmãos, ameaçaram-nos de que o sangue de Luís Capeto cairia sobre as nossas cabeças: pois bem, que ele caia; Luís Capeto lavou tantas vezes as mãos no nosso! Republicanos, o sangue de um rei traz felicidade".» O que recorda igualmente a teologia paulina da epístola aos Hebreus: «Segundo a Lei, quase tudo é purificado pelo sangue, e sem efusão de sangue não há remissão» (HEb 9,22). Depois da morte de Jesus, «toda a multidão [...] se foi embora batendo no peito» (Lc 23,48). Da mesma maneira, Paris ficou em estado de choque. Finalmente, o dia da morte de Luís XVI, 21 de Janeiro, é também o dia da festa de Santa Inês, nome cuja origem vem desse meigo animal que é o cordeiro. Este paralelo revela talvez a verdadeira personalidade de Luís XVI: cordeiro destinado ao sacrifício. A sua repugnância, ou, mais precisamente, a sua incapacidade para fazer verter sangue, a sua pretensa fraqueza, não eram mais do que a expressão de uma profunda humanidade, que contrasta tão vivamente com a frieza rectilínea dos revolucionários jacobinos.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
sábado, 14 de maio de 2011
domingo, 8 de maio de 2011
O sacríficio do Rei I
Dai-nos uma mente lúcida, e uma vontade firme, Ámen!
A morte do rei de França terá tido, portanto, consequências incalculáveis. O Ancien Régime devia ser, sem dúvida, profundamente renovado - Luís XVI apercebera-se disso e tinha instaurado um começo de democracia local por parte das assembleias provinciais. A religião católica esgotada, sem dúvida, e deformada pela sua caricatura jansenista, por séculos de controvérsias teológicas e de crises diversas, devia igualmente retomar um novo fôlego, mas em vez de reformar, preferiam destruir. E é assim que a morte do rei, longe de instaurar em França uma civilização pacífica e fraterna, terá precipitado brutalmente a nação nos abismos, fragilizando consideravelmente o país nos seus fundamentos mais profundos, dilacerando-o em facções político-ideológicas irreconciliáveis, sangrando-o sem possibilidade de regresso nas suas forças vivas e fazendo-lhe perder progressivamente o seu lugar no concerto das nações.
Eis ainda, por outro lado, outras consequências da morte de Luís XVI; a fraqueza drástica do executivo em França de 1792 a 1958, tendo muita dificuldade em reinventar a sua legitimidade; as consequências desastrosas desta fraqueza na condução das guerras, designadamente na prevenção da escalada do nazismo e do genocídio judeu; a perda progressiva de influência internacional da França, que se esforça cada vez mais por desempenhar o seu pólo pacificador anti-hegemónico tradicional nas relações internacionais; o paradoxal acto de dobrar-se sobre si mesma por parte da França; o peso exagerado de Paris, transformada em nova «cabeça» do país depois da morte do rei; a evacuação progressiva e radical do espiritual na vida colectiva; a perda da marca de referência masculina, estruturadora, na psique colectiva francesa, em que o rei representava tradicionalmente a figura do pai; a perda do verdadeiro sentido da liberdade; a despersonalização das relações sociais; a sobrevalorização do conflito como modo de resolução dos problemas da sociedade; a presença intempestiva de uma espécie de esoterismo «egipcionizante» em determinadas construções peculiares do novo regime (pirâmide do Louvre, pirâmide da Torre do Crédit Lyonnais em Lyon, etc); o triunfo da nova religião e a profileração do ocultismo e de formas subtis de opressão, sob o pretexto paradoxal e hipócrita de humanismo, de ateísmo, de laicidade e de racionalismo.
E foi assim que, pela decapitação do rei, um edifício milenar se desmoronou - o da antiga civilização cristã constantiniana, numa onda de choque que se propagou de país em país, derrubando por todo o lado as monarquias e enfraquecendo as Igrejas. Os avanços da civilização, doravante amputados da sua garantia espiritual, devem agora ser pagos por crises sociais, políticas e económicas, e guerras de extermínio duma amplitude sem precedente. Nomeadamente, o espírito da revolução iria dividir-se dentro de pouco tempo em princípios políticos e ideológicos contraditórios, procurando reciprocamente exterminar-se e vencer-se uns aos outros, para finalmente desembocar no mundo contemporâneo, que coincide precisamente com o imaginado por determinados sonhadores do século : um conglomerado de repúblicas laicas supostamente chegadas ao «fim da história», uma civilização tecnicista, toda ela votada à exploração do mundo material, mas à qual faltam, no entanto, o calor da vida e o sopro do espírito.
Em razão da vastidão das suas consequências, a morte de Luís XVI deve ser estudada de perto; apercebemo-nos então de que, pelas suas próprias configurações, ela não deixa de se revestir de um carácter religioso que parece entrar em vivo contraste com a modernidade política que dela procederá. De facto, a maior parte dos historiadores e memorialistas, querendo todavia escrever num registo muito prosaico, não pode impedir-se de, quando trata dela, evocar espontaneamente o termo profundamente religioso de «sacrifício», ao referir-se além disso à Antiguidade, até mesmo ao cristianismo. O sacrifício do rei é deste modo concebido como o acto sacrificial fundador do novo regime e de uma nova era na história do mundo.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
A morte do rei de França terá tido, portanto, consequências incalculáveis. O Ancien Régime devia ser, sem dúvida, profundamente renovado - Luís XVI apercebera-se disso e tinha instaurado um começo de democracia local por parte das assembleias provinciais. A religião católica esgotada, sem dúvida, e deformada pela sua caricatura jansenista, por séculos de controvérsias teológicas e de crises diversas, devia igualmente retomar um novo fôlego, mas em vez de reformar, preferiam destruir. E é assim que a morte do rei, longe de instaurar em França uma civilização pacífica e fraterna, terá precipitado brutalmente a nação nos abismos, fragilizando consideravelmente o país nos seus fundamentos mais profundos, dilacerando-o em facções político-ideológicas irreconciliáveis, sangrando-o sem possibilidade de regresso nas suas forças vivas e fazendo-lhe perder progressivamente o seu lugar no concerto das nações.
Eis ainda, por outro lado, outras consequências da morte de Luís XVI; a fraqueza drástica do executivo em França de 1792 a 1958, tendo muita dificuldade em reinventar a sua legitimidade; as consequências desastrosas desta fraqueza na condução das guerras, designadamente na prevenção da escalada do nazismo e do genocídio judeu; a perda progressiva de influência internacional da França, que se esforça cada vez mais por desempenhar o seu pólo pacificador anti-hegemónico tradicional nas relações internacionais; o paradoxal acto de dobrar-se sobre si mesma por parte da França; o peso exagerado de Paris, transformada em nova «cabeça» do país depois da morte do rei; a evacuação progressiva e radical do espiritual na vida colectiva; a perda da marca de referência masculina, estruturadora, na psique colectiva francesa, em que o rei representava tradicionalmente a figura do pai; a perda do verdadeiro sentido da liberdade; a despersonalização das relações sociais; a sobrevalorização do conflito como modo de resolução dos problemas da sociedade; a presença intempestiva de uma espécie de esoterismo «egipcionizante» em determinadas construções peculiares do novo regime (pirâmide do Louvre, pirâmide da Torre do Crédit Lyonnais em Lyon, etc); o triunfo da nova religião e a profileração do ocultismo e de formas subtis de opressão, sob o pretexto paradoxal e hipócrita de humanismo, de ateísmo, de laicidade e de racionalismo.
E foi assim que, pela decapitação do rei, um edifício milenar se desmoronou - o da antiga civilização cristã constantiniana, numa onda de choque que se propagou de país em país, derrubando por todo o lado as monarquias e enfraquecendo as Igrejas. Os avanços da civilização, doravante amputados da sua garantia espiritual, devem agora ser pagos por crises sociais, políticas e económicas, e guerras de extermínio duma amplitude sem precedente. Nomeadamente, o espírito da revolução iria dividir-se dentro de pouco tempo em princípios políticos e ideológicos contraditórios, procurando reciprocamente exterminar-se e vencer-se uns aos outros, para finalmente desembocar no mundo contemporâneo, que coincide precisamente com o imaginado por determinados sonhadores do século : um conglomerado de repúblicas laicas supostamente chegadas ao «fim da história», uma civilização tecnicista, toda ela votada à exploração do mundo material, mas à qual faltam, no entanto, o calor da vida e o sopro do espírito.
Em razão da vastidão das suas consequências, a morte de Luís XVI deve ser estudada de perto; apercebemo-nos então de que, pelas suas próprias configurações, ela não deixa de se revestir de um carácter religioso que parece entrar em vivo contraste com a modernidade política que dela procederá. De facto, a maior parte dos historiadores e memorialistas, querendo todavia escrever num registo muito prosaico, não pode impedir-se de, quando trata dela, evocar espontaneamente o termo profundamente religioso de «sacrifício», ao referir-se além disso à Antiguidade, até mesmo ao cristianismo. O sacrifício do rei é deste modo concebido como o acto sacrificial fundador do novo regime e de uma nova era na história do mundo.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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sábado, 30 de abril de 2011
Últimos dias de Luís XVI part IV
Apenas restava o delfim de oito anos, que se tornara Luís XVII depois da morte de Luís XVI, e reconhecido como tal pelos grandes Estados europeus e pelos Estados Unidos que, aliás, não tinham reconhecido a nova República. Foi guardado no Templo como refém, já que alguns revolucionários receavam que um revés pudesse conduzir a uma restauração monárquica. Mas isso não evitou que morresse de tristeza e de maus-tratos, num regicídio por negligência, que foi certamente tão cruel como o do seu pai. Depois de ter ficado muito tempo sob a influência do cordoeiro Simon, que queria fazer dele um sans-culotte, foi emparedado no segundo andar da torre durante seis meses, fechado à chave no antigo quarto do seu pai, onde viveu completamente isolado, com uma simples portinhola servindo para lhe fornecer a alimentação. Ficava aí o dia inteiro, prostrado no seu berço demasiado pequeno. Acabará por morrer de tuberculose em 1795.
O regicídio, na verdade, não se ficou por aqui, mas tomou uma feição deliberadamente sistemática, assestando golpes nos monumentos e relíquias da dinastia real: segundo um relatório de Barère do dia 1 de Agosto de 1793, um decreto da convenção ordenou assim a destruição dos túmulos e das estátuas jacentes da necrópole real de Saint-Denis. A destruição teve lugar a 6 ou 8 de Agosto de 1793, atingindo 51 monumentos; como pôde escrever Dom Poirirer, responsável do lugar, «em três dias, foi destruído o trabalho de doze séculos»: No dia 14 de Agosto foi efectuada a «destruição imediata dos monumentos, restos da feudalidade ainda existente em templos e outros lugares públicos». De 12 a 25 de Outubro, foi a vez de os próprios mausoléus da necrópole serem destruídos. O corpos dos reis e das rainhas, muitas vezes embalsamados e mumificados, foram exumados a fim de serem postos numa vala comum, debaixo de cal viva, depois de terem sido por vezes submetidos a macabras encenações.
Num acesso de raiva violenta e exterminadora, o espírito da Revolução terá deste modo abatido a mais velha monarquia da Europa, de raízes seculares, mergulhando a Europa no luto e na incerteza. E, à medida que o antigo mundo desaparecia, a nova religião, eminentemente anticristã, surge à luz do dia, imprimindo a sua marca sobre todas as esferas da vida social e, nomeadamente, para usar o exemplo concreto, sobre o calendário. No seu «relatório sobre a Era da República», apresentado à Convenção no dia 10 de Setembro de 1793, o astrónomo Gilbert Romme (da loja das Neuf Soeurs) apresenta o calendário republicano, de evidente inspiração maçónica. Conspurcando a era cristã como era de «crueldade» e de «escravidão», pretendendo fazer tábua rasa de todo o passado cristão, o projecto visa regressar, pela contemplação racional dos elementos, à ordem imutável da natureza, já revelada pelas tradições ancestrais dos Egípcios e dos Babilónios. Numa mistura curiosa, mas reveladora do esoterismo e de republicanismo, o relator escreve: «A Revolução Francesa apresenta um acordo demasiado impressionante e talvez único nos anais do mundo, entre os movimentos celestes, as estações, as tradições antigas e o decurso dos acontecimentos, para que toda a nação não adira à nova ordem de coisas que nós apresentámos». Ele observa, com efeito, que, quando a República foi proclamada em 22 de Setembro de 1792, «às 9 horas, 18 minutos e 30 segundos de manhã, o Sol atingiu o verdadeiro equinócio, entrando no signo da Balança». Também comenta: «Deste modo, a igualdade dos dias e noites estava inscrita no céu, no exacto momento em que a igualdade civil e moral era proclamada pelos representantes do povo francês como fundamento sagrado do seu novo governo»; «Por isso, o SOl passou de um hemisfério para o outro no mesmo dia em que o povo, triunfando da opressão dos reis, passou do governo monárquico para o governo republicano.» A revolução é concebida como um regresso Às origens do paganismo, para além do passado cristão, ou seja, uma nova criação: «As tradições sagradas do Egipto, que se tornaram as de todo o Oriente, faziam sair a terra do caos sob o mesmo signo que a nossa República e fixavam aí a origem das coisas e dos tempos». Eis, pois, a França, antiga filha primogénita da Igreja, antigo novo Israel, que se transforma num novo Egipto, destinado a dar ao mundo o ideal político-esotérico da República maçónica, numa espécie de contra-revolução tardia, mas poderosa, a que Alain Decaux pôde chamar a Revolução da Cruz.
Seria excessivamente demorado recordar em detalhe as perseguições anticatólicas que acompanharam esta nova ordem «religiosa». Pouco depois da instauração da República, o republicano Fouché, chegado à Vendeia, tomou uma série de medidas que foram em seguida adoptadas pela Comuna de Paris. Em 7 de Outubro, a sainte Ampoule foi (em parte) quebrada em Reims. Foram pilhadas numerosas igrejas, os seus ornamentos e quadros queimados emautos-de-fé; os padres, os frades e as monjas de clausura foram aconselhados vivamente a abjurar dos seus votos. Em Paris, a palavra «santo» era retirada dos nomes das ruas; bustos de Marat substituíam as estátuas religiosas. OS hábitos religiosos foram proibidos. Os massacres da Vendeia são igualmente compreensíveis nesta perspectiva. Durante este tempo, a nova religião instalava-se. Em 10 de Agosto de 1793, aniversário do assalto às Tulherias, teve lugar o «Festival da Regeneração», ou «Festival da Unidade e da Indivisibilidade da República». Sobre as ruínas da Bastilha, David tinha representado a Mãe Natureza: uma figura feminina sentada, de cujos seios corriam dois jactos de água. Três meses depois, por ocasião do «Festival da Razão», uma actriz de ópera desempenhou o papel da deusa Razão em plena catedral de Notre-Dame, transformada em «Templo da Razão», com o barrete vermelho da liberdade sobre a cabeça e um crucifixo atado debaixo de um dos pés. Em 7 de Maio de 1794, por decreto do 18 Floreal, Robespierre instaura o culto para-maçónico do Ser Supremo, fundador da nova religião cívica.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
O regicídio, na verdade, não se ficou por aqui, mas tomou uma feição deliberadamente sistemática, assestando golpes nos monumentos e relíquias da dinastia real: segundo um relatório de Barère do dia 1 de Agosto de 1793, um decreto da convenção ordenou assim a destruição dos túmulos e das estátuas jacentes da necrópole real de Saint-Denis. A destruição teve lugar a 6 ou 8 de Agosto de 1793, atingindo 51 monumentos; como pôde escrever Dom Poirirer, responsável do lugar, «em três dias, foi destruído o trabalho de doze séculos»: No dia 14 de Agosto foi efectuada a «destruição imediata dos monumentos, restos da feudalidade ainda existente em templos e outros lugares públicos». De 12 a 25 de Outubro, foi a vez de os próprios mausoléus da necrópole serem destruídos. O corpos dos reis e das rainhas, muitas vezes embalsamados e mumificados, foram exumados a fim de serem postos numa vala comum, debaixo de cal viva, depois de terem sido por vezes submetidos a macabras encenações.
Num acesso de raiva violenta e exterminadora, o espírito da Revolução terá deste modo abatido a mais velha monarquia da Europa, de raízes seculares, mergulhando a Europa no luto e na incerteza. E, à medida que o antigo mundo desaparecia, a nova religião, eminentemente anticristã, surge à luz do dia, imprimindo a sua marca sobre todas as esferas da vida social e, nomeadamente, para usar o exemplo concreto, sobre o calendário. No seu «relatório sobre a Era da República», apresentado à Convenção no dia 10 de Setembro de 1793, o astrónomo Gilbert Romme (da loja das Neuf Soeurs) apresenta o calendário republicano, de evidente inspiração maçónica. Conspurcando a era cristã como era de «crueldade» e de «escravidão», pretendendo fazer tábua rasa de todo o passado cristão, o projecto visa regressar, pela contemplação racional dos elementos, à ordem imutável da natureza, já revelada pelas tradições ancestrais dos Egípcios e dos Babilónios. Numa mistura curiosa, mas reveladora do esoterismo e de republicanismo, o relator escreve: «A Revolução Francesa apresenta um acordo demasiado impressionante e talvez único nos anais do mundo, entre os movimentos celestes, as estações, as tradições antigas e o decurso dos acontecimentos, para que toda a nação não adira à nova ordem de coisas que nós apresentámos». Ele observa, com efeito, que, quando a República foi proclamada em 22 de Setembro de 1792, «às 9 horas, 18 minutos e 30 segundos de manhã, o Sol atingiu o verdadeiro equinócio, entrando no signo da Balança». Também comenta: «Deste modo, a igualdade dos dias e noites estava inscrita no céu, no exacto momento em que a igualdade civil e moral era proclamada pelos representantes do povo francês como fundamento sagrado do seu novo governo»; «Por isso, o SOl passou de um hemisfério para o outro no mesmo dia em que o povo, triunfando da opressão dos reis, passou do governo monárquico para o governo republicano.» A revolução é concebida como um regresso Às origens do paganismo, para além do passado cristão, ou seja, uma nova criação: «As tradições sagradas do Egipto, que se tornaram as de todo o Oriente, faziam sair a terra do caos sob o mesmo signo que a nossa República e fixavam aí a origem das coisas e dos tempos». Eis, pois, a França, antiga filha primogénita da Igreja, antigo novo Israel, que se transforma num novo Egipto, destinado a dar ao mundo o ideal político-esotérico da República maçónica, numa espécie de contra-revolução tardia, mas poderosa, a que Alain Decaux pôde chamar a Revolução da Cruz.
Seria excessivamente demorado recordar em detalhe as perseguições anticatólicas que acompanharam esta nova ordem «religiosa». Pouco depois da instauração da República, o republicano Fouché, chegado à Vendeia, tomou uma série de medidas que foram em seguida adoptadas pela Comuna de Paris. Em 7 de Outubro, a sainte Ampoule foi (em parte) quebrada em Reims. Foram pilhadas numerosas igrejas, os seus ornamentos e quadros queimados emautos-de-fé; os padres, os frades e as monjas de clausura foram aconselhados vivamente a abjurar dos seus votos. Em Paris, a palavra «santo» era retirada dos nomes das ruas; bustos de Marat substituíam as estátuas religiosas. OS hábitos religiosos foram proibidos. Os massacres da Vendeia são igualmente compreensíveis nesta perspectiva. Durante este tempo, a nova religião instalava-se. Em 10 de Agosto de 1793, aniversário do assalto às Tulherias, teve lugar o «Festival da Regeneração», ou «Festival da Unidade e da Indivisibilidade da República». Sobre as ruínas da Bastilha, David tinha representado a Mãe Natureza: uma figura feminina sentada, de cujos seios corriam dois jactos de água. Três meses depois, por ocasião do «Festival da Razão», uma actriz de ópera desempenhou o papel da deusa Razão em plena catedral de Notre-Dame, transformada em «Templo da Razão», com o barrete vermelho da liberdade sobre a cabeça e um crucifixo atado debaixo de um dos pés. Em 7 de Maio de 1794, por decreto do 18 Floreal, Robespierre instaura o culto para-maçónico do Ser Supremo, fundador da nova religião cívica.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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domingo, 24 de abril de 2011
Últimos dias de Luís XVI part III
Aleluia o Senhor ressuscitou! Boa Páscoa..
Sansão e os seus dois ajudantes abrem agora a portinhola da carruagem. Aparece o rei, segundo as palavras de Sansão, «mais digno, mais calmo, mais majestoso do que jamais o vira em Versalhes e nas Tulherias». Apeia-se e encara os três homens que o cercam, com frieza e desajeitadamente, para lhe tirarem algumas peças de vestuário. Luís afasta-os com altivez e tira-as ele mesmo. Seguidamente querem atar-lhe as mãos. O rei exclama: «Atar-me! Não, jamais o consentirei: fazei o que vos é ordenado, mas não me atareis; renunciai a este projecto.» A tensão sobe. A guarda agita-se. Todos estão embaraçados. Sansão pede então a Edgeworth que intervenha, dizendo-lhe num murmúrio: «Enquanto estivermos a atar-lhe as mãos, ganharemos tempo; o povo ficará talvez emocionado e intervirá em seu favor.» Edgeworth aquiesce e, comovido com a cena, acaba por dizer: «Sir, neste novo ultraje não vejo senão um último traço de semelhança entre vossa Majestade e Deus que vai ser a sua recompensa.» O rei ergue então os olhos para o céu, com, segundo Edgeworth, «uma expressão de dor que nunca serei capaz de transmitir». Suspira e resigna-se: «Seguramente, não é necessário nada menos do que o seu exemplo para que me submeta a semelhante afronta» e, voltando-se para os carrascos: «Fazei o que quiserdes, beberei o cálice da amargura.» O rei apresenta os antebraços que são então atados com um dos seus lenços, sob os olhares da multidão silenciosa. O seu confessor dá-lhe então a beijar a imagem de Cristo e acompanha-o em direcção ao seu destino.
Luís sobe lentamente com Edgeworth os degraus íngremes do cadafalso. Depois, repentinamente, chegado acima, avança com um passo rápido até a extremidade da plataforma. Com um gesto imperioso, faz calar os tambores surpreendidos e grita com voz forte a fim de se fazer ouvir por todos: «Morro inocente de todos os crimes que me imputam. Perdoo aos autores da minha morte e peço a Deus que o sangue que ireis derramar nunca venha a cair sobre a França. E vós, povo desventurado...» É então que um apaniguado de Santerre intima aos tambores que recomecem a rufar, a fim de abafarem a sua voz. Desapontado, o rei bate com o pé no cadafalso, clamando por silêncio. É neutralizado pelos ajudantes e depois, segundo Sansão, deixa-se conduzir para cima da guilhotina onde o amarram. Enquanto o amarram ao estrado, numa derradeira tentativa, dirige-se aos carrascos para que a sua última mensagem seja levado ao povo: «Senhores, sou inocente de tudo aquilo que me inculpam. Espero que o meu sangue possa cimentar a felicidade dos franceses.» Em seguida diz: «Entrego a minha alma a Deus.» O cutelo cai às 10h22. Edgeworth suspira: «Filho de São Luís, subi ao céu!» - ainda que mais tarde não se venha a recordar de ter pronunciado estas palavras. Alguns fanáticos regozijam-se, um deles, mesmo, aspergue a multidão com sangue, gritando: «Irmãos, fomos ameaçados de que o sangue de Luís Capeto cairia sobre as nossas cabeças; pois bem, que ele caia sobre elas.» Uma lenda pretende que um desconhecido teria gritado também do meio da multidão: «Jacques de Molay, estás vingado!» Todavia, por contraste, o resto da multidão, soldados e civis, permanece petrificado. Sansão escreve de Luís XVI: «Começava a suscitar uma verdadeira compaixão e, realmente, não compreendo que ele, depois de todos os avisos que ontem recebi, fosse tão cruelmente abandonado. O menor sinal teria sido suficiente para fazer surgir uma diversão em seu favor, pois, se quando o meu ajudante Gros mostrou essa augusta cabeça aos assistentes alguns alucinados lançaram gritos de triunfo, a maior parte voltou-se com um profundo horror e um doloroso estremecimento.»-
A morte do rei foi registada pelo governo republicano com a maior frieza. A denominação de «Louis Capet» com que tinha sido cognominado, suprimindo qualquer partícula e qualquer origem já prefigurava a decapitação; o registo do falecimento do rei, voluntariamente reduzido a um simples acto burocrático, deriva da mesma lógica, como o faz notar Alain Boureau: «Ao cutelo mecânico da guilhotina corresponde o tratamento estritamente igualitário do formulário administrativo que regista o falecimento de 21 de Janeiro de 1793».
Os franceses encontravam-se, entretanto, num estado de espírito completamente diverso. Durante o resto do dia 21, ao lado de uma minoria que celebra ruidosamente as suas esperanças, cedo desmentidas, de ver abrir-se sem custos uma era de paz e felicidade, a maior parte dos franceses continua mergulhada numa espécie de torpor e de tristeza, e Paris fica recolhido em luto. Fockdey refere-se a um «dia de amargura, de dor, de abalo e de luto. A capital encontrava-se envolvida pela angústia. A quase totalidade das casas e das lojas estava fechada, famílias inteiras em pranto. A quase totalidade das casas e das lojas estava fechada, famílias inteiras em pranto. A consternação lia-se em todos os rostos. Uma grande parte dos guardas nacionais, a pé desde as seis horas da manhã, parecia que ia ela própria para o suplício. Não, as cenas de que fui testemunha naquele dia jamais se apagarão da minha memória. Quantas lágrimas vi correr! Quantas imprecações ouvi contra os autores de tal perversidade! A minha pena recua, fica suspensa diante da enumeração de tudo aquilo de que fui testemunha ocular e auricular. Nesse dia, a Assembleia estava sombria e silenciosa, os votantes do regicídio estavam pálidos e desfeitos. Parecia que sentiam horror de si mesmo.» Em fins de Janeiro, Dumouriez atravessa o norte da França antes de chegar a paris a 2 de Fevereiro de 1793; em toda a Picardia, em Artois e na Flandres marítima, depara-se com o povo «consternado» pela morte trágica de Luís XVI, sentindo «tanto horror como receio à simples menção dos jacobinos». A agitação faz-se igualmente sentir no exército: o relatório Dutard de 17 de maio de 1793 assinala: «Os voluntários que regressam do exército parecem zangados por terem feito morrer este rei, e só por causa disto esfolariam todos os jacobinos.»
A seu tempo, os revolucionário irão empenhar-se contra a família de Luís XVI, apesar das promessas e garantias que este último tinha recebido da parte de Garat e da Convenção. No dia 1 de Agosto, depois de a Áustria, não se importando com que a rainha sobreviva ou não, ter capturado os emissários da Convenção, esta última remeteu Maria Antonieta ao tribunal revolucionário. Ela defendeu-se com sinceridade: «Sim, o povo foi enganado, e cruelmente, mas não pelo meu marido, nem por mim - Por quem foi então o povo enganado? - Por aqueles que nisso tinham interesse [...] Nunca desejámos outra coisa que não fosse a felicidade da França.» Como havia contra ela poucas provas concretas, inventou-se uma acusação de incesto com o filho à qual respondeu com um silêncio indignado. Não obstante a inconsistência da acusação, foi condenada à morte e executada em 16 de Outubro de 1793. manteve-se elegante até ao fim: ao pisar os pés do carrasco, exclamou: «perdão, senhor, não o fiz de propósito.» Da mesma forma, em 10 de maio de 1794, morreu a irmãzinha de Luís XVI, Madame Elisabeth, no cadafalso revolucionário.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
Sansão e os seus dois ajudantes abrem agora a portinhola da carruagem. Aparece o rei, segundo as palavras de Sansão, «mais digno, mais calmo, mais majestoso do que jamais o vira em Versalhes e nas Tulherias». Apeia-se e encara os três homens que o cercam, com frieza e desajeitadamente, para lhe tirarem algumas peças de vestuário. Luís afasta-os com altivez e tira-as ele mesmo. Seguidamente querem atar-lhe as mãos. O rei exclama: «Atar-me! Não, jamais o consentirei: fazei o que vos é ordenado, mas não me atareis; renunciai a este projecto.» A tensão sobe. A guarda agita-se. Todos estão embaraçados. Sansão pede então a Edgeworth que intervenha, dizendo-lhe num murmúrio: «Enquanto estivermos a atar-lhe as mãos, ganharemos tempo; o povo ficará talvez emocionado e intervirá em seu favor.» Edgeworth aquiesce e, comovido com a cena, acaba por dizer: «Sir, neste novo ultraje não vejo senão um último traço de semelhança entre vossa Majestade e Deus que vai ser a sua recompensa.» O rei ergue então os olhos para o céu, com, segundo Edgeworth, «uma expressão de dor que nunca serei capaz de transmitir». Suspira e resigna-se: «Seguramente, não é necessário nada menos do que o seu exemplo para que me submeta a semelhante afronta» e, voltando-se para os carrascos: «Fazei o que quiserdes, beberei o cálice da amargura.» O rei apresenta os antebraços que são então atados com um dos seus lenços, sob os olhares da multidão silenciosa. O seu confessor dá-lhe então a beijar a imagem de Cristo e acompanha-o em direcção ao seu destino.
Luís sobe lentamente com Edgeworth os degraus íngremes do cadafalso. Depois, repentinamente, chegado acima, avança com um passo rápido até a extremidade da plataforma. Com um gesto imperioso, faz calar os tambores surpreendidos e grita com voz forte a fim de se fazer ouvir por todos: «Morro inocente de todos os crimes que me imputam. Perdoo aos autores da minha morte e peço a Deus que o sangue que ireis derramar nunca venha a cair sobre a França. E vós, povo desventurado...» É então que um apaniguado de Santerre intima aos tambores que recomecem a rufar, a fim de abafarem a sua voz. Desapontado, o rei bate com o pé no cadafalso, clamando por silêncio. É neutralizado pelos ajudantes e depois, segundo Sansão, deixa-se conduzir para cima da guilhotina onde o amarram. Enquanto o amarram ao estrado, numa derradeira tentativa, dirige-se aos carrascos para que a sua última mensagem seja levado ao povo: «Senhores, sou inocente de tudo aquilo que me inculpam. Espero que o meu sangue possa cimentar a felicidade dos franceses.» Em seguida diz: «Entrego a minha alma a Deus.» O cutelo cai às 10h22. Edgeworth suspira: «Filho de São Luís, subi ao céu!» - ainda que mais tarde não se venha a recordar de ter pronunciado estas palavras. Alguns fanáticos regozijam-se, um deles, mesmo, aspergue a multidão com sangue, gritando: «Irmãos, fomos ameaçados de que o sangue de Luís Capeto cairia sobre as nossas cabeças; pois bem, que ele caia sobre elas.» Uma lenda pretende que um desconhecido teria gritado também do meio da multidão: «Jacques de Molay, estás vingado!» Todavia, por contraste, o resto da multidão, soldados e civis, permanece petrificado. Sansão escreve de Luís XVI: «Começava a suscitar uma verdadeira compaixão e, realmente, não compreendo que ele, depois de todos os avisos que ontem recebi, fosse tão cruelmente abandonado. O menor sinal teria sido suficiente para fazer surgir uma diversão em seu favor, pois, se quando o meu ajudante Gros mostrou essa augusta cabeça aos assistentes alguns alucinados lançaram gritos de triunfo, a maior parte voltou-se com um profundo horror e um doloroso estremecimento.»-
A morte do rei foi registada pelo governo republicano com a maior frieza. A denominação de «Louis Capet» com que tinha sido cognominado, suprimindo qualquer partícula e qualquer origem já prefigurava a decapitação; o registo do falecimento do rei, voluntariamente reduzido a um simples acto burocrático, deriva da mesma lógica, como o faz notar Alain Boureau: «Ao cutelo mecânico da guilhotina corresponde o tratamento estritamente igualitário do formulário administrativo que regista o falecimento de 21 de Janeiro de 1793».
Os franceses encontravam-se, entretanto, num estado de espírito completamente diverso. Durante o resto do dia 21, ao lado de uma minoria que celebra ruidosamente as suas esperanças, cedo desmentidas, de ver abrir-se sem custos uma era de paz e felicidade, a maior parte dos franceses continua mergulhada numa espécie de torpor e de tristeza, e Paris fica recolhido em luto. Fockdey refere-se a um «dia de amargura, de dor, de abalo e de luto. A capital encontrava-se envolvida pela angústia. A quase totalidade das casas e das lojas estava fechada, famílias inteiras em pranto. A quase totalidade das casas e das lojas estava fechada, famílias inteiras em pranto. A consternação lia-se em todos os rostos. Uma grande parte dos guardas nacionais, a pé desde as seis horas da manhã, parecia que ia ela própria para o suplício. Não, as cenas de que fui testemunha naquele dia jamais se apagarão da minha memória. Quantas lágrimas vi correr! Quantas imprecações ouvi contra os autores de tal perversidade! A minha pena recua, fica suspensa diante da enumeração de tudo aquilo de que fui testemunha ocular e auricular. Nesse dia, a Assembleia estava sombria e silenciosa, os votantes do regicídio estavam pálidos e desfeitos. Parecia que sentiam horror de si mesmo.» Em fins de Janeiro, Dumouriez atravessa o norte da França antes de chegar a paris a 2 de Fevereiro de 1793; em toda a Picardia, em Artois e na Flandres marítima, depara-se com o povo «consternado» pela morte trágica de Luís XVI, sentindo «tanto horror como receio à simples menção dos jacobinos». A agitação faz-se igualmente sentir no exército: o relatório Dutard de 17 de maio de 1793 assinala: «Os voluntários que regressam do exército parecem zangados por terem feito morrer este rei, e só por causa disto esfolariam todos os jacobinos.»
A seu tempo, os revolucionário irão empenhar-se contra a família de Luís XVI, apesar das promessas e garantias que este último tinha recebido da parte de Garat e da Convenção. No dia 1 de Agosto, depois de a Áustria, não se importando com que a rainha sobreviva ou não, ter capturado os emissários da Convenção, esta última remeteu Maria Antonieta ao tribunal revolucionário. Ela defendeu-se com sinceridade: «Sim, o povo foi enganado, e cruelmente, mas não pelo meu marido, nem por mim - Por quem foi então o povo enganado? - Por aqueles que nisso tinham interesse [...] Nunca desejámos outra coisa que não fosse a felicidade da França.» Como havia contra ela poucas provas concretas, inventou-se uma acusação de incesto com o filho à qual respondeu com um silêncio indignado. Não obstante a inconsistência da acusação, foi condenada à morte e executada em 16 de Outubro de 1793. manteve-se elegante até ao fim: ao pisar os pés do carrasco, exclamou: «perdão, senhor, não o fiz de propósito.» Da mesma forma, em 10 de maio de 1794, morreu a irmãzinha de Luís XVI, Madame Elisabeth, no cadafalso revolucionário.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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Revolução Francesa
domingo, 17 de abril de 2011
Últimos dias de Luís XVI part II
Senhor consolai os oprimidos e tristes, Ámen!
Chega a madrugada, depois de uma noite em que a neve caiu em força. Luís XVI é acordado às cinco horas por Cléry, que acende a lareira. Tinha passado a noite em oração numa cadeia. Trocam as seguintes palavras: «Onde está o Sr. de Firmont? - Na minha cama. - E vós, onde passastes a noite? - Nesta cadeira. - Não queria que isto acontecesse. - Ah! Sire, como poderia eu estar a pensar em mim neste momento?» O Rei entrega-lhe diversos artigos pessoais. Edgeworth prepara em seguida a missa - não trouxe Eucaristia por receio das profanações e vai falar ao conselho dos guardas municipais para obter o que lhe era necessário. O conselho desconfia de que queria envenenar o rei, mas acaba por ceder. A missa começa às seis horas. O rei assiste a ela de joelhos, no chão, muito recolhido, sem genuflexório nem almofada: «Meu Deus, como estou feliz por ter conservado os meus princípios! Sem eles, onde é que estaria agora? Mas, com eles, como a morte me irá parecer doce! Sim, lá no alto existe um juiz incorruptível que saberá bem fazer-me a justiça que os homens me recusam aqui em baixo.» A justiça em questão entregará a França às facções e lançá-la-á na sangrenta epopeia napoleónica. Todavia, no cadafalso, Luís XVI proferirá palavras de perdão para o país que o traiu. Passado algum tempo ouve-se o toque para reunir: é a guarda nacional que começa a juntar-se. Querendo cumprir a promessa, o rei pretende rever a rainha, mas Edgeworth dissuade-o, pois esta ideia poderia comprometer a firmeza e a coragem do rei. Santerre e a sua tropa chegam e batem à porta. O rei abre-a e pede-lhes que esperem, volta a entrar, põe-se de joelhos e pede a bênção a Edgeworth: «Tudo está consumado, Senhor: dai-me a vossa derradeira bênção e pedi a Deus que me dê forças até ao fim.» Depois de ter recebido a bênção, o rei volta a sair, estendendo o seu testamento a um antigo padre blasfemador, Jacques Roux, para que seja comunicado a sua mulher: «Peço-vos que entregueis este papel à rainha.. (hesitação) à minha mulher.» Jacques Roux recusa e tem a audácia de responder: «Eu estou aqui para vos conduzir ao cadafalso.»
Luís XVI sai pela porta que viu passar, muitos anos atrás, Jacques de Molay dirigindo-se À fogueira. Volta-se por um última vez para o lugar em que se encontravam os seus - o torreão do Templo que será destruído por Napoleão, inquieto por vê-lo tornar-se lugar de peregrinação realista. Sobe em seguida para uma carruagem verde aberta - a carruagem do maire Chambon - com Edgeworth, em frente de dois guardas visivelmente impressionados. Durante mais de uma hora, a carruagem, precedida por uma centena de tambores, rodeada de granadeiros, escoltada por um grupo de cavaleiros de sabre desembainhado, abre dificilmente caminho pelas ruas de Paris, com as janelas e vidraças mandadas fechar, rodeadas de várias filas de guardas nacionais e de sans-culottes mais entristecidos do que a sua rigidez solene deixa adivinhar. O sacerdote empresta o breviário a Luís XVI e ambos recitam os salmos apropriados. Quais? Por exemplo, sem dúvida, o Salmo 3 de que os Girault de Coursac encontraram a tradução corrente na época:
"Senhor, porque se multiplicaram os meus perseguidores?
É grande o número dos que se revoltaram contra mim!
Ouço-os a dizer: «Deus que ele serve não o arrancará das nossas mãos».
E, no entanto, Senhor, Vós me estendeis o braço; sim, Vós sereis a minha glória,
E a minha cabeça. que eles vão abater, Vós a erguereis."
A carruagem, entretanto, prossegue o seu caminho. De repente, um homem isolado grita, ao assalto, para libertar o rei. Outros parecem segui-lo. Mas não podem passar a linha dos soldados e perdem-se na multidão. É o barão Jean de Batz, que tinha projectado raptar o rei com 400 realistas, dos quais a maior parte, denunciada por um traidor, tinha sido presa no domicílio, em plena noite, pela polícia. Batz escapará ao Terror e morrerá em paz em 1822.
A maiorira dos parisienses aparenta estar, simultaneamente, triste e resignada. Não há ninguém, nem mesmo os republicanos, que não deixe transparecer alguma emoção. Manuel, que tinha tentado ajudar orei, demitiu-se. Robespierre, que se aloja em casa dos Duplays, ordena que mantenham a porta fechada durante todo o dia para poupar à família o espectáculo do cortejo . Hébert, o enragé, desfaz-se em lágrimas em pleno Conselho Geral: «O tirano gostava muito do meu cão e acariciou-o várias vezes; estou a lembrar-me disso neste momento.»
A carruagem chega por volta das dez horas `praça da Revolução (actual Praça de La Concorde), em frente das Tulherias. Por receio de um eventual movimento do povo em favor do rei, a praça está guarnecida de tropas bem armadas: comprimem-se aí 80 000 guardas nacionais e gendarmes e 84 pelas de artilharia. Somente 3000 ou 4000 sans-culottes das secções foram admitidos a tomar lugar atrás dos soldados. A multidão, petrificada pelo dispositivo militar, é empurrada para muito longe, em grupos dispersos para evitar qualquer amotinação. Edgeworth escreve: «Por todos os lados, em volta, tão longe quanto a vista podia alcançar, via-se uma multidão em armas.» E Sansão: «O povo, relegado para trás desta soldadesca, parece fulminado pela estupefacção e mantém-se num silêncio sombrio.» Quanto ao cadafalso, encontra-se no centro de um vasto espaço, rodeado de canhões, não longe do pedestal vazio que outrora sustentava a estátua de Luís XV. A carruagem foi acolhida por Sansão e pelos seus ajudantes. Sansão carrasco oficial, cujo nome evoca a Lei implacável do Antigo Testamento, tinha doravante a seu cargo a guilhotina. Sincero patriota no princípio da Revolução, cujo entusiasmo tinha sido arrefecido pela sequência dos acontecimentos, continuava apegado à monarquia e à pessoa do rei, com quem se tinha encontrado alguns anos antes, por causa de um problema financeiro. Um memorial, transmitido aos seus filhos, descreve como, na véspera da execução do rei, tinha anulado a festa de aniversário do seu casamento, e como numerosas pessoas o tinham visitado, assegurando-lhe que tudo seria feito para libertar o rei - um jovem quis mesmo substituir-se a ele para morrer em seu lugar. O próprio Sansão tinha, de madrugada, levado armas debaixo da capa para fugir com o rei em caso de sublevação.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
Chega a madrugada, depois de uma noite em que a neve caiu em força. Luís XVI é acordado às cinco horas por Cléry, que acende a lareira. Tinha passado a noite em oração numa cadeia. Trocam as seguintes palavras: «Onde está o Sr. de Firmont? - Na minha cama. - E vós, onde passastes a noite? - Nesta cadeira. - Não queria que isto acontecesse. - Ah! Sire, como poderia eu estar a pensar em mim neste momento?» O Rei entrega-lhe diversos artigos pessoais. Edgeworth prepara em seguida a missa - não trouxe Eucaristia por receio das profanações e vai falar ao conselho dos guardas municipais para obter o que lhe era necessário. O conselho desconfia de que queria envenenar o rei, mas acaba por ceder. A missa começa às seis horas. O rei assiste a ela de joelhos, no chão, muito recolhido, sem genuflexório nem almofada: «Meu Deus, como estou feliz por ter conservado os meus princípios! Sem eles, onde é que estaria agora? Mas, com eles, como a morte me irá parecer doce! Sim, lá no alto existe um juiz incorruptível que saberá bem fazer-me a justiça que os homens me recusam aqui em baixo.» A justiça em questão entregará a França às facções e lançá-la-á na sangrenta epopeia napoleónica. Todavia, no cadafalso, Luís XVI proferirá palavras de perdão para o país que o traiu. Passado algum tempo ouve-se o toque para reunir: é a guarda nacional que começa a juntar-se. Querendo cumprir a promessa, o rei pretende rever a rainha, mas Edgeworth dissuade-o, pois esta ideia poderia comprometer a firmeza e a coragem do rei. Santerre e a sua tropa chegam e batem à porta. O rei abre-a e pede-lhes que esperem, volta a entrar, põe-se de joelhos e pede a bênção a Edgeworth: «Tudo está consumado, Senhor: dai-me a vossa derradeira bênção e pedi a Deus que me dê forças até ao fim.» Depois de ter recebido a bênção, o rei volta a sair, estendendo o seu testamento a um antigo padre blasfemador, Jacques Roux, para que seja comunicado a sua mulher: «Peço-vos que entregueis este papel à rainha.. (hesitação) à minha mulher.» Jacques Roux recusa e tem a audácia de responder: «Eu estou aqui para vos conduzir ao cadafalso.»
Luís XVI sai pela porta que viu passar, muitos anos atrás, Jacques de Molay dirigindo-se À fogueira. Volta-se por um última vez para o lugar em que se encontravam os seus - o torreão do Templo que será destruído por Napoleão, inquieto por vê-lo tornar-se lugar de peregrinação realista. Sobe em seguida para uma carruagem verde aberta - a carruagem do maire Chambon - com Edgeworth, em frente de dois guardas visivelmente impressionados. Durante mais de uma hora, a carruagem, precedida por uma centena de tambores, rodeada de granadeiros, escoltada por um grupo de cavaleiros de sabre desembainhado, abre dificilmente caminho pelas ruas de Paris, com as janelas e vidraças mandadas fechar, rodeadas de várias filas de guardas nacionais e de sans-culottes mais entristecidos do que a sua rigidez solene deixa adivinhar. O sacerdote empresta o breviário a Luís XVI e ambos recitam os salmos apropriados. Quais? Por exemplo, sem dúvida, o Salmo 3 de que os Girault de Coursac encontraram a tradução corrente na época:
"Senhor, porque se multiplicaram os meus perseguidores?
É grande o número dos que se revoltaram contra mim!
Ouço-os a dizer: «Deus que ele serve não o arrancará das nossas mãos».
E, no entanto, Senhor, Vós me estendeis o braço; sim, Vós sereis a minha glória,
E a minha cabeça. que eles vão abater, Vós a erguereis."
A carruagem, entretanto, prossegue o seu caminho. De repente, um homem isolado grita, ao assalto, para libertar o rei. Outros parecem segui-lo. Mas não podem passar a linha dos soldados e perdem-se na multidão. É o barão Jean de Batz, que tinha projectado raptar o rei com 400 realistas, dos quais a maior parte, denunciada por um traidor, tinha sido presa no domicílio, em plena noite, pela polícia. Batz escapará ao Terror e morrerá em paz em 1822.
A maiorira dos parisienses aparenta estar, simultaneamente, triste e resignada. Não há ninguém, nem mesmo os republicanos, que não deixe transparecer alguma emoção. Manuel, que tinha tentado ajudar orei, demitiu-se. Robespierre, que se aloja em casa dos Duplays, ordena que mantenham a porta fechada durante todo o dia para poupar à família o espectáculo do cortejo . Hébert, o enragé, desfaz-se em lágrimas em pleno Conselho Geral: «O tirano gostava muito do meu cão e acariciou-o várias vezes; estou a lembrar-me disso neste momento.»
A carruagem chega por volta das dez horas `praça da Revolução (actual Praça de La Concorde), em frente das Tulherias. Por receio de um eventual movimento do povo em favor do rei, a praça está guarnecida de tropas bem armadas: comprimem-se aí 80 000 guardas nacionais e gendarmes e 84 pelas de artilharia. Somente 3000 ou 4000 sans-culottes das secções foram admitidos a tomar lugar atrás dos soldados. A multidão, petrificada pelo dispositivo militar, é empurrada para muito longe, em grupos dispersos para evitar qualquer amotinação. Edgeworth escreve: «Por todos os lados, em volta, tão longe quanto a vista podia alcançar, via-se uma multidão em armas.» E Sansão: «O povo, relegado para trás desta soldadesca, parece fulminado pela estupefacção e mantém-se num silêncio sombrio.» Quanto ao cadafalso, encontra-se no centro de um vasto espaço, rodeado de canhões, não longe do pedestal vazio que outrora sustentava a estátua de Luís XV. A carruagem foi acolhida por Sansão e pelos seus ajudantes. Sansão carrasco oficial, cujo nome evoca a Lei implacável do Antigo Testamento, tinha doravante a seu cargo a guilhotina. Sincero patriota no princípio da Revolução, cujo entusiasmo tinha sido arrefecido pela sequência dos acontecimentos, continuava apegado à monarquia e à pessoa do rei, com quem se tinha encontrado alguns anos antes, por causa de um problema financeiro. Um memorial, transmitido aos seus filhos, descreve como, na véspera da execução do rei, tinha anulado a festa de aniversário do seu casamento, e como numerosas pessoas o tinham visitado, assegurando-lhe que tudo seria feito para libertar o rei - um jovem quis mesmo substituir-se a ele para morrer em seu lugar. O próprio Sansão tinha, de madrugada, levado armas debaixo da capa para fugir com o rei em caso de sublevação.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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domingo, 10 de abril de 2011
Últimos dias de Luís XVI
De toda a espécie de totalitarismos livrai-nos Senhor, Ámen!
Desde os dias que se seguiram ao 10 de Agosto, Luís XVI vive prisioneiro no torreão do Templo, espiado por dois guardas que perscrutam os seus menores gestos. A partir de Dezembro, encontra-se totalmente separado da família. No dia 18 de Janeiro, pela manhã, Malesherbes vem, constristado, anunciar-lhe a sentença. Meditativo, Luís XVI, que já esperava o pior, afirma-lhe: «Senhor de Malesherbes, juro-vos com toda a sinceridade do meu coração, como um homem que vai comparecer diante de Deus, que quis constantemente a felicidade do povo e nunca formei uma intenção que lhe fosse contrária.» Malesherbes não quer perder a esperança; evoca a possibilidade de um levantamento para o salvar: «-Mas, sire - acrescentou ele -, os celerados ainda não tem o poder e tudo quanto há de gente honesta virá salvar vossa majestade ou perecer a seus pés. - Não, Senhor de Malesherbes, isso iria muita gente, faria com que a guerra civil se instalasse em Paris; prefiro morrer, e peço-vos que lhes ordeneis da minha parte que não tomem qualquer iniciativa para me salvarem.» Ao seu criado Cléry, que fala também de uma revolta para o libertar, responde: «Zangar-me-ia se ela acontecesse, haveria novas vítimas..» E profere este veredicto profético: «Vejo o povo entregue à anarquia, tornado vítima de todas as facções, os crimes a sucederem-se, longas dissensões a dilacerarem França.» Finalmente entrega a Malesherbes papéis ultra-confidenciais, que serão posteriormente recuperados pelo realista Antraigues. Este último dirá que são «de pôr os cabelos em pé quando forem conhecidos». Mas virão oportunamente a perder-se. Os dois homens separam-se. DEcorrem dois longos dias. Para se ocupar, o rei, como se procurasse compreender melhor o seu destino, tenta decifrar um logogrifo do Mercure de France. Acaba por consegui-lo, estende o enigma, a Cléry, que não é capaz de o resolver, e diz-lhe: «Como é possível! Não o descobris? No entanto, ele aplica-se bem a mim! A palavra é sacrifice!»
Por fim, em 20 de Janeiro, pelas duas horas, chega o conselho executivo au complet, ou seja, ao todo 15 pessoas, entre elas Garat, ministro da justiça, Chambon, maire de Paris, o sinistro Santerre, comandante das guardas nacionais de Paris. Depois de um breve preâmbulo de Garat, Grouvelle lê o decreto proclamando a execução do rei por «conspiração contra a liberdade da nação». A execução terá lugar no dia seguinte. Luís XVI fica impassível. Esboça contudo um sorriso irónico ao ouvir a palavra conspiração. Pega em seguida no decreto e guarda-o na carteira e esta no seu bolso. Lê-lhes em seguida uma carta na qual pede o fim da vigilância contínua, uma suspensão de três dias para preparar a sua alma e o sacerdote refractário Edgeworth de Firmont como confessor. Pede também à nação que cuide da sua família e de todos os pensionistas que não têm senão o dinheiro do rei para sobreviverem. Separam-se todos. Luís XVI vai então visitar os comissários de Templo. O seu olhar recai sobre a declaração dos Direitos do Homem. Exclama: «Ah! Se se tivesse seguido este artigo, ter-se-ia evitado grande parte da desordem.» Com efeito, o artigo 8 em questão determina: «A lei só deve estabelecer as penas estrita e evidentemente necessárias; ninguém pode ser punido por uma lei que não esteja estabelecida e promulgada anteriormente ao delito, e legalmente aplicável.» Bem entendido, este artigo foi desrespeitado durante o processo.
Por sua parte, Garat dirige-se à Convenção e depois, no começo da noite, vai procurar Edgeworth. na carruagem que o leva ao Templo, lamenta-se: «Meu Deus! De que horrível incumbência me vejo encarregado!» A entrevista com o rei deixou-o visivelmente muito impressionado, porque exclama: «Que homem! Que resignação! Que coragem! Não, a natureza apenas não seria capaz de dar tão grande força, há nisto algo de sobre-humano.» Edgeworth prefere guardar o silêncio. Os homens chegam ao Templo, são revistados, sobem uma escada em caracol, atravessam uma série de barreiras em que sentinelas sans-culottes, meio ébrias, soltam gritos horrorosos que se repercutem pelas abóbadas do torreão. Garat entre em primeiro lugar, com alguns ministros, deixando atrás de si Edgesworth. Anuncia a Luís XVI que a suspensão é rejeitada, mas que é autorizado a ver o seu confessor e a assistir à missa. No que respeita à sua família, a resposta da Convenção, que ele transmite, é ambígua: «A nação francesa, tão grande na sua benevolência quanto rigorosa na sua justiça, cuidará da sua família e assegurar-lhe-á uma sorte conveniente.»
então Edgeworth entre e Luís XVI intima os ministros a retirarem-se. Profundamente emocionado, Edgeworth acaba por desfazer-se em lágrimas e com ele o Rei. Mas recompõe-se e lê-lhe o seu testamento: «Perdoo de todo o coração àqueles que se fizeram meus inimigos sem que eu lhes tenha dado algum motivo para tal e peço a Deus que lhes perdoe.» A emoção regressa quando se trata dos que lhe são próximos: «Recomendo ao meu filho, se ele tiver a infelicidade de vir a ser rei, de pensar que se deve por inteiro à felicidade dos seus concidadãos, e que deve esquecer todo o ódio e todo o ressentimento, designadamente tudo o que está ligado aos infortúnios e aos desgostos que sofro.» Perdoa igualmente aos seus parentes, à rainha, a Monsieur, ao duque d'Orléans. No que respeita a este último, deixa escapar um suspiro: «Que fiz eu ao meu primo para que me persiga desta maneira? Mas porquê querer-lhe mal? Ele é mais de lamentar do que eu próprio.»
depois de ter completado a toilette diante de vários soldados da guarda municipal, encontra-se com os seus parentes, sob o olhar inquisidor dos comissários postados numa divisão contígua separada por uma vidraça fina. A entrevista prossegue durante duas horas. Em momentos trágicos como estes, Luís XVI, com a rainha à esquerda, a princesa Elisabeth à direita, o delfim ao pé dele, dá conhecimento à família da sua condenação. A filha desmaia. O delfim corre até junto da sentinela, gritando: «Deixai-me passar! Deixai-me passar! Vou pedir ao povo que não faça morrer o papá-rei.» Têm de se separar; Luís XVI promete-lhes que os voltará a ver no dia seguinte às sete horas. Vai ter com Edgeworth e confessa-lhe: «Que entrevista acabo de ter! Vê-se bem que amo e que sou ternamente amado.» Fica com ele até às duas horas e em seguida vai deitar-se.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
Desde os dias que se seguiram ao 10 de Agosto, Luís XVI vive prisioneiro no torreão do Templo, espiado por dois guardas que perscrutam os seus menores gestos. A partir de Dezembro, encontra-se totalmente separado da família. No dia 18 de Janeiro, pela manhã, Malesherbes vem, constristado, anunciar-lhe a sentença. Meditativo, Luís XVI, que já esperava o pior, afirma-lhe: «Senhor de Malesherbes, juro-vos com toda a sinceridade do meu coração, como um homem que vai comparecer diante de Deus, que quis constantemente a felicidade do povo e nunca formei uma intenção que lhe fosse contrária.» Malesherbes não quer perder a esperança; evoca a possibilidade de um levantamento para o salvar: «-Mas, sire - acrescentou ele -, os celerados ainda não tem o poder e tudo quanto há de gente honesta virá salvar vossa majestade ou perecer a seus pés. - Não, Senhor de Malesherbes, isso iria muita gente, faria com que a guerra civil se instalasse em Paris; prefiro morrer, e peço-vos que lhes ordeneis da minha parte que não tomem qualquer iniciativa para me salvarem.» Ao seu criado Cléry, que fala também de uma revolta para o libertar, responde: «Zangar-me-ia se ela acontecesse, haveria novas vítimas..» E profere este veredicto profético: «Vejo o povo entregue à anarquia, tornado vítima de todas as facções, os crimes a sucederem-se, longas dissensões a dilacerarem França.» Finalmente entrega a Malesherbes papéis ultra-confidenciais, que serão posteriormente recuperados pelo realista Antraigues. Este último dirá que são «de pôr os cabelos em pé quando forem conhecidos». Mas virão oportunamente a perder-se. Os dois homens separam-se. DEcorrem dois longos dias. Para se ocupar, o rei, como se procurasse compreender melhor o seu destino, tenta decifrar um logogrifo do Mercure de France. Acaba por consegui-lo, estende o enigma, a Cléry, que não é capaz de o resolver, e diz-lhe: «Como é possível! Não o descobris? No entanto, ele aplica-se bem a mim! A palavra é sacrifice!»
Por fim, em 20 de Janeiro, pelas duas horas, chega o conselho executivo au complet, ou seja, ao todo 15 pessoas, entre elas Garat, ministro da justiça, Chambon, maire de Paris, o sinistro Santerre, comandante das guardas nacionais de Paris. Depois de um breve preâmbulo de Garat, Grouvelle lê o decreto proclamando a execução do rei por «conspiração contra a liberdade da nação». A execução terá lugar no dia seguinte. Luís XVI fica impassível. Esboça contudo um sorriso irónico ao ouvir a palavra conspiração. Pega em seguida no decreto e guarda-o na carteira e esta no seu bolso. Lê-lhes em seguida uma carta na qual pede o fim da vigilância contínua, uma suspensão de três dias para preparar a sua alma e o sacerdote refractário Edgeworth de Firmont como confessor. Pede também à nação que cuide da sua família e de todos os pensionistas que não têm senão o dinheiro do rei para sobreviverem. Separam-se todos. Luís XVI vai então visitar os comissários de Templo. O seu olhar recai sobre a declaração dos Direitos do Homem. Exclama: «Ah! Se se tivesse seguido este artigo, ter-se-ia evitado grande parte da desordem.» Com efeito, o artigo 8 em questão determina: «A lei só deve estabelecer as penas estrita e evidentemente necessárias; ninguém pode ser punido por uma lei que não esteja estabelecida e promulgada anteriormente ao delito, e legalmente aplicável.» Bem entendido, este artigo foi desrespeitado durante o processo.
Por sua parte, Garat dirige-se à Convenção e depois, no começo da noite, vai procurar Edgeworth. na carruagem que o leva ao Templo, lamenta-se: «Meu Deus! De que horrível incumbência me vejo encarregado!» A entrevista com o rei deixou-o visivelmente muito impressionado, porque exclama: «Que homem! Que resignação! Que coragem! Não, a natureza apenas não seria capaz de dar tão grande força, há nisto algo de sobre-humano.» Edgeworth prefere guardar o silêncio. Os homens chegam ao Templo, são revistados, sobem uma escada em caracol, atravessam uma série de barreiras em que sentinelas sans-culottes, meio ébrias, soltam gritos horrorosos que se repercutem pelas abóbadas do torreão. Garat entre em primeiro lugar, com alguns ministros, deixando atrás de si Edgesworth. Anuncia a Luís XVI que a suspensão é rejeitada, mas que é autorizado a ver o seu confessor e a assistir à missa. No que respeita à sua família, a resposta da Convenção, que ele transmite, é ambígua: «A nação francesa, tão grande na sua benevolência quanto rigorosa na sua justiça, cuidará da sua família e assegurar-lhe-á uma sorte conveniente.»
então Edgeworth entre e Luís XVI intima os ministros a retirarem-se. Profundamente emocionado, Edgeworth acaba por desfazer-se em lágrimas e com ele o Rei. Mas recompõe-se e lê-lhe o seu testamento: «Perdoo de todo o coração àqueles que se fizeram meus inimigos sem que eu lhes tenha dado algum motivo para tal e peço a Deus que lhes perdoe.» A emoção regressa quando se trata dos que lhe são próximos: «Recomendo ao meu filho, se ele tiver a infelicidade de vir a ser rei, de pensar que se deve por inteiro à felicidade dos seus concidadãos, e que deve esquecer todo o ódio e todo o ressentimento, designadamente tudo o que está ligado aos infortúnios e aos desgostos que sofro.» Perdoa igualmente aos seus parentes, à rainha, a Monsieur, ao duque d'Orléans. No que respeita a este último, deixa escapar um suspiro: «Que fiz eu ao meu primo para que me persiga desta maneira? Mas porquê querer-lhe mal? Ele é mais de lamentar do que eu próprio.»
depois de ter completado a toilette diante de vários soldados da guarda municipal, encontra-se com os seus parentes, sob o olhar inquisidor dos comissários postados numa divisão contígua separada por uma vidraça fina. A entrevista prossegue durante duas horas. Em momentos trágicos como estes, Luís XVI, com a rainha à esquerda, a princesa Elisabeth à direita, o delfim ao pé dele, dá conhecimento à família da sua condenação. A filha desmaia. O delfim corre até junto da sentinela, gritando: «Deixai-me passar! Deixai-me passar! Vou pedir ao povo que não faça morrer o papá-rei.» Têm de se separar; Luís XVI promete-lhes que os voltará a ver no dia seguinte às sete horas. Vai ter com Edgeworth e confessa-lhe: «Que entrevista acabo de ter! Vê-se bem que amo e que sou ternamente amado.» Fica com ele até às duas horas e em seguida vai deitar-se.
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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Revolução Francesa
domingo, 3 de abril de 2011
A Tomada de consciência e o memorícidio IV - Fim
Quem ama o Senhor, transborda de alegria, Ámen!
A operação consiste em lavar a Revolução de toda a mancha, a retirar a nódoa de sangue vendeano. Como se é incapaz de explicar o crime cometido, prefere-se negá-lo, relativizá-lo, justificá-lo, o método mais espalhado entre os historiadores «negacionistas», método que continua a ser utilizado nos nossos dias. Leia-se por exemplo, os livros escolares sobre a questão: a Vendeia é sabiamente resumida a uma pequena guerra civil, nascida em Março de 1793 e morta em Dezembro do mesmo ano. Os factos de 1794 não são definidos senão em relação a uma guerrilha ou cinicamente concentrados sobre um massacre que se seguiu a um outro massacre, este cometido pelos azuis, em Pornic, três dias antes, e um pseudo-assassinato de um criança-soldado, denominada Bara, morte de que não se conhece a origem, e cujo mito foi criado em todos os detalhes pelo próprio Robespierre, apesar dos protestos do superior da criança, que será aliás condenado à morte por esta razão e executado. Este negacionismo vai tão longe que chega a negar, e recusa, a existência das leis de aniquilamento e extermínio, apesar da sua publicação, no jornal oficial da época, do plano designado por plano de Turreau, plano este de que os arquivos do forte de Vincennes conservam o original, redigido pelo próprio Turreau, dos afogamentos, das matanças em massa, designadamente de crianças e mulheres, dos fornos crematórios, dos curtimentos de peles humanas, dos derretimentos de gorduras, etc. Alguns destes historiadores nem sequer hesitam em justificar o injustificável em nome da Revolução, partindo do princípio de que, constituindo a Revolução um bloco, nada deveria manchá-la. Este argumento é utilizado pela primeira vez por ocasião do processo Carrier. O advogado Tronson Ducoudray denuncia-o vivamente em termos muito precisos: «É», diz ele, «uma outra calúnia que os facciosos lançam desde há algum tempo, com habilidade, entre o povo. Eles pretendem que, ao recordar os horrores da Vendeia, se vá desencadear o processo da Revolução.»
A nível local, até 1814-1815, os vendeanos mantêm-se relativamente discretos em relação aos acontecimentos, sem dúvida em razão do contexto, mas também por falta de um porta-voz de envergadura e de meios designadamente financeiros, inteiramente consagrados à reconstrução. Com a Restauração, os vendeanos aprendem a apropriar-se da sua história graças, entre outras coisas, à publicação de testemunhos, tais como os das marquesas de Bonchamps e de la Rochejaquelein, à construção de monumentos, designadamente de estátuas em honra de la Rochejaquelein, de Bonchamps, de Charette, de Cathelineau… à trasladação dos restos mortais dos grandes chefes, de vítimas isoladas e até mesmo de ossários como em Bouguenais e La Chapelle-Basse-mer. A partir dos anos de 1830, quer dizer, no momento do arranque, ao nível do Estado, da manipulação da história oficial relativa à Vendeia, inicia-se uma verdadeira política de devoção, tanto mais intensa quanto as últimas testemunhas estão prestes a desaparecer. Todavia, se a lembrança dos acontecimentos se transmite de geração em geração, maciçamente até aos anos de 1960, em nenhum momento os vendeanos tomaram consciência da especificidade do crime de Estado cometido contra eles, e portanto nunca integraram. A título de exemplo, é o que explica que determinadas comunas vendeanas tenham dado o nome dos seus carrascos a ruas, como em Challans o de lazare Carnot, o autor da carta de 8 de Fevereiro de 1894, que avaliza o plano de Turreau.
A nível nacional, o bicentenário da Revolução deveria ter constituído ocasião de abordar, à margem de qualquer ideologia, este período. Não somente isso não aconteceu, mas tudo foi feito na perspectiva do dogma oficial. A título de exemplo, os colóquios científicos, organizados sobre a questão vendeana, não tinham outro objectivo. Aliás, houve a precaução de evitar convidar qualquer contraditor, taxado de revisionismo, e, para cúmulo, fazendo o que fosse necessário para os impedir de serem contratados como docentes ou investigadores.
Este comportamento teve consequências gravíssimas. A nível humano, era uma ocasião de reparar um delito histórico cometido contra os vendeanos, cuja história faz ainda dos traidores e dos seus carrascos «santos laicos» e vítimas; a nível científico, de precisar a verdadeira dimensão do drama vendeano que é efectivamente um genocídio matricial como o havia tão bem analisado, já em 1795, Gracchus Babeuf, numa obra de uma incrível modernidade, intitulada Du Système de Dépopulation ou la Vie et les Crimes de Carrier. De resto, lideres comunistas como Lenine, Pol Pot, etc.; não se enganaram a este respeito: foram aí buscar as suas reflexões e os seus métodos. Para além disto, ter-se-ia podido reflectir sobre um certo número de questões, tais como a filiação entre o terror e os sistemas comunistas e nazi, o suporte jurídico da deportação judaica sobre o qual se apoiou Vichy, etc.; ao nível do direito internacional, era uma boa ocasião de alargar o campo de acção do conceito de genocídio à memória e de definir o crime de memoricídio. Com efeito, crime contra a humanidade, a noção de genocídio é limitada à concepção ou à realização, ou ainda à cumplicidade de extermínio parcial ou total de um grupo humano de tipo racial, étnico ou religioso e, portanto, encontram-se excluídas a memória e a manipulação. Em 1991, publiquei na editora de Olivier Orban uma obra intitulada Juifs et Vendéens, d’um Génocide à l’Autre: la Manipulation de la Mémoire. Conclui, escrevendo: «Os assassinos da memória são perigosos: se conseguem persuadir a opinião pública, sempre pronta a reprimir o que ultrapassa o seu entendimento, de que o genocídio judeu não teve lugar ou de que ele se justifica, o impensável de ontem pode tornar-se a realidade de amanhã. É por isso que a memória judaica não é assunto que respeite unicamente aos judeus, mas a todos, como a Vendeia o deveria ter sido antes de ontem e isto em prol da dignidade da humanidade.» O colóquio negacionista organizado pelo Irão, em importância nem a marginalizar, porque os interesses ideológicos e políticos primam naturalmente sobre a verdade, qualquer que ela seja: a Vendeia foi disto o exemplo matricial.
Reynald Secher, Doutor em Letras
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
A operação consiste em lavar a Revolução de toda a mancha, a retirar a nódoa de sangue vendeano. Como se é incapaz de explicar o crime cometido, prefere-se negá-lo, relativizá-lo, justificá-lo, o método mais espalhado entre os historiadores «negacionistas», método que continua a ser utilizado nos nossos dias. Leia-se por exemplo, os livros escolares sobre a questão: a Vendeia é sabiamente resumida a uma pequena guerra civil, nascida em Março de 1793 e morta em Dezembro do mesmo ano. Os factos de 1794 não são definidos senão em relação a uma guerrilha ou cinicamente concentrados sobre um massacre que se seguiu a um outro massacre, este cometido pelos azuis, em Pornic, três dias antes, e um pseudo-assassinato de um criança-soldado, denominada Bara, morte de que não se conhece a origem, e cujo mito foi criado em todos os detalhes pelo próprio Robespierre, apesar dos protestos do superior da criança, que será aliás condenado à morte por esta razão e executado. Este negacionismo vai tão longe que chega a negar, e recusa, a existência das leis de aniquilamento e extermínio, apesar da sua publicação, no jornal oficial da época, do plano designado por plano de Turreau, plano este de que os arquivos do forte de Vincennes conservam o original, redigido pelo próprio Turreau, dos afogamentos, das matanças em massa, designadamente de crianças e mulheres, dos fornos crematórios, dos curtimentos de peles humanas, dos derretimentos de gorduras, etc. Alguns destes historiadores nem sequer hesitam em justificar o injustificável em nome da Revolução, partindo do princípio de que, constituindo a Revolução um bloco, nada deveria manchá-la. Este argumento é utilizado pela primeira vez por ocasião do processo Carrier. O advogado Tronson Ducoudray denuncia-o vivamente em termos muito precisos: «É», diz ele, «uma outra calúnia que os facciosos lançam desde há algum tempo, com habilidade, entre o povo. Eles pretendem que, ao recordar os horrores da Vendeia, se vá desencadear o processo da Revolução.»
A nível local, até 1814-1815, os vendeanos mantêm-se relativamente discretos em relação aos acontecimentos, sem dúvida em razão do contexto, mas também por falta de um porta-voz de envergadura e de meios designadamente financeiros, inteiramente consagrados à reconstrução. Com a Restauração, os vendeanos aprendem a apropriar-se da sua história graças, entre outras coisas, à publicação de testemunhos, tais como os das marquesas de Bonchamps e de la Rochejaquelein, à construção de monumentos, designadamente de estátuas em honra de la Rochejaquelein, de Bonchamps, de Charette, de Cathelineau… à trasladação dos restos mortais dos grandes chefes, de vítimas isoladas e até mesmo de ossários como em Bouguenais e La Chapelle-Basse-mer. A partir dos anos de 1830, quer dizer, no momento do arranque, ao nível do Estado, da manipulação da história oficial relativa à Vendeia, inicia-se uma verdadeira política de devoção, tanto mais intensa quanto as últimas testemunhas estão prestes a desaparecer. Todavia, se a lembrança dos acontecimentos se transmite de geração em geração, maciçamente até aos anos de 1960, em nenhum momento os vendeanos tomaram consciência da especificidade do crime de Estado cometido contra eles, e portanto nunca integraram. A título de exemplo, é o que explica que determinadas comunas vendeanas tenham dado o nome dos seus carrascos a ruas, como em Challans o de lazare Carnot, o autor da carta de 8 de Fevereiro de 1894, que avaliza o plano de Turreau.
A nível nacional, o bicentenário da Revolução deveria ter constituído ocasião de abordar, à margem de qualquer ideologia, este período. Não somente isso não aconteceu, mas tudo foi feito na perspectiva do dogma oficial. A título de exemplo, os colóquios científicos, organizados sobre a questão vendeana, não tinham outro objectivo. Aliás, houve a precaução de evitar convidar qualquer contraditor, taxado de revisionismo, e, para cúmulo, fazendo o que fosse necessário para os impedir de serem contratados como docentes ou investigadores.
Este comportamento teve consequências gravíssimas. A nível humano, era uma ocasião de reparar um delito histórico cometido contra os vendeanos, cuja história faz ainda dos traidores e dos seus carrascos «santos laicos» e vítimas; a nível científico, de precisar a verdadeira dimensão do drama vendeano que é efectivamente um genocídio matricial como o havia tão bem analisado, já em 1795, Gracchus Babeuf, numa obra de uma incrível modernidade, intitulada Du Système de Dépopulation ou la Vie et les Crimes de Carrier. De resto, lideres comunistas como Lenine, Pol Pot, etc.; não se enganaram a este respeito: foram aí buscar as suas reflexões e os seus métodos. Para além disto, ter-se-ia podido reflectir sobre um certo número de questões, tais como a filiação entre o terror e os sistemas comunistas e nazi, o suporte jurídico da deportação judaica sobre o qual se apoiou Vichy, etc.; ao nível do direito internacional, era uma boa ocasião de alargar o campo de acção do conceito de genocídio à memória e de definir o crime de memoricídio. Com efeito, crime contra a humanidade, a noção de genocídio é limitada à concepção ou à realização, ou ainda à cumplicidade de extermínio parcial ou total de um grupo humano de tipo racial, étnico ou religioso e, portanto, encontram-se excluídas a memória e a manipulação. Em 1991, publiquei na editora de Olivier Orban uma obra intitulada Juifs et Vendéens, d’um Génocide à l’Autre: la Manipulation de la Mémoire. Conclui, escrevendo: «Os assassinos da memória são perigosos: se conseguem persuadir a opinião pública, sempre pronta a reprimir o que ultrapassa o seu entendimento, de que o genocídio judeu não teve lugar ou de que ele se justifica, o impensável de ontem pode tornar-se a realidade de amanhã. É por isso que a memória judaica não é assunto que respeite unicamente aos judeus, mas a todos, como a Vendeia o deveria ter sido antes de ontem e isto em prol da dignidade da humanidade.» O colóquio negacionista organizado pelo Irão, em importância nem a marginalizar, porque os interesses ideológicos e políticos primam naturalmente sobre a verdade, qualquer que ela seja: a Vendeia foi disto o exemplo matricial.
Reynald Secher, Doutor em Letras
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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