Senhor, revela o teu amor aos que crêem em vós, Ámen!
FRATERNIDADE
Quem diz fraternidade diz forçosamente parentalidade comum. Não há dúvida de que é necessário que exista uma origem comum (ou pelo menos começo comum) para que haja elo fraternal. Ora, a República Francesa, ao negar o Pai dos Céus, ao guilhotinar o pai da nação, terá de ir encontrar noutro lado uma origem comum, com o risco de ter de a inventar. Será uma mãe, a pátria ou, melhor dito, a matria que gera e alimenta os seus filhos. Enquanto que a nação exista na pessoa do pai que lhe conferia a sua coerência, a pátria existe em função dos seus filhos, mãe possessiva que os dá À luz e os sufoca. Eles mesmo deverão estar prontos a morrer para a defender. Ora, não se dá a vida senão por amor e não se ama senão uma pessoa. Começa então a personificação da matria, o seu antropomorfismo: ela toma os traços de uma mulher generosa a quem se dá o nome de Marianne, uma invasão do solo passa a ser a violação da mãe-pátria que deverá ser vingada segundo as leis de sangue. Mas quanto a viver, trata-se antes de morrer: a única fraternidade proposta sela-se no levantamento em massa, na conscrição. Os filhos («Allons, efants de la patrie») só existem porque partem para a guerra. A fraternidade só é possível em fraternidade de armas.
Por muito que Marianne tenha representada generosa, com belos seios alimentícios, transformar-se-á com o passar dos anos em Medeia, mãe indigna que mato os seus filhos. A mãe que alimenta transformou-se num ogre. Quem ainda se atreve a dizer que morreria por ela?
No entanto, esta fraternidade nacional funcionou durante um certo tempo, teria mesmo continuado a funcionar se não tivesse existido, na origem, um vício de forma que torna impossível esta ficção. A ficção advém da decisão arbitrária de escolher o seu progenitor ou a sua progenitora. A tensão natural da República em relação ao universal permitiu, ao longo da história, substituir a nação pela Europa enquanto aguardava uma nova identidade, ainda mais vasta, ainda mais universal. Esta expansão para o universal onde o particular é apenas transitório (era necessário batermo-nos pela França); hoje, já não é necessário batermo-nos pela França mas pela Europa, enquanto aguardamos que nos digam que já não será preciso batermo-nos pela Europa, mas por...?), é a fuga permanente para diante do projecto republicano. De fraternidade nacional, foi portanto necessário passar a uma fraternidade cidadã, mais fluída, ilimitada.
Quando Alain Badiou, o mais republicano e o mais universal dos nossos filósofos, opõe singularidade universal e comunidade, propõe ao indivíduo estar só face ao universo, sem nenhuma possibilidade intermédia. Ora, se existe uma fraternidade universal, aquela que nos fez filho e filha de um mesmo Pai dos Céus, esta inscreve-se em comunidades particulares, em fraternidades particulares, Alain Badiou recusa a encarnação e deixa o indivíduo, como um cosmonauta que, num universo sideral, negro e frio, se teria desligado do cordão que o ligava ao vaivém espacial. Não propõe ao homem senão um destino, que se perca no universo.
Hoje, ao negar a origem comum (a mãe-pátria já não tem qualquer sucesso junto dos republicanos), a República insistiu em manter a fraternidade, mas no sentido de solidariedade. Esta, puramente abstracta, uma vez que não assenta sobre qualquer laço real, propõe então abrir esta solidariedade a todos. Mas, neste universo abstracto, já não há súbditos (que são no entanto aqueles sobre os quais se podem efectivar reivindicações), já não há mais do que seres vivos que reclamam direitos de seres vivos. Ora o direito dos seres vivos exprime-se hoje de duas maneiras: a segurança do risco zero e o direito à felicidade: «Tomado na sua dimensão de ser vivo, o indivíduo tem menos direitos e deveres do que pontos de vulnerabilidade a segurar e capacidades de realização e de satisfação a optimizar.» Encontramo-nos portanto no melhor dos mundos onde, ao ter apagado toda a dimensão do súbdito dependente de alguém que lhe confere um direito, não restam senão vivos que reclamam direitos que ninguém lhes pode dar.
O mundo do Ancien Régime conhecia a fraternidade e são, muito curiosamente, os autores marxistas, que melhor nos explicam como estas fraternidades medievais funcionavam, porque as suas análises socioeconómicas permitem descrever com precisão estes laços de solidariedade:
As massas rurais, com todas as condições jurídicas confundidas (homens livres, escravos, dependentes..), viviam certamente em condições medíocres, à mercê de crises de subsistência, geradoras de penúria e por vezes de fomes assustadoras. Mas estes fenómenos atingiam a sociedade rural no seu conjunto, uma sociedade pouco diferenciada no plano económico. Naturalmente, apresentavam-se casos de pauperização de famílias rurais ligados, quer à doença, quer à pressão que os poderosos exerciam sobre elas. Estes choques eram amortecidos pelas solidariedades locais (família, comunidades rurais, Igrejas) e, quaisquer que fossem as situações, não desembocavam na constituição de um extracto social particular dos pobres, caracterizados por um estilo de vida.
O proletariado nasce da constituição das primeiras cidades. Os servos libertos acorrem às cidades em busca de trabalho. Os mais afortunados podem entrar para confrarias de ofícios onde encontram uma solidariedade económica, social, cultural e política. Mas nem todos os servos libertos encontram trabalho. Assim se constitui uma classe pobre que se torna, para os burgueses, uma classe perigosa e para a Igreja uma população a ajudar:
De uma maneira mais geral, [os pobres] beneficiam desta «revolução da caridade» que se insere nos grandes movimentos espirituais e institucionais (designadamente a reforma Gregoriana) dos séculos XI e XII. A catequese focaliza-se sobre a acção caritativa. Entre 1150 e 1300, é edificada uma vasta rede de hospitais e instituições de caridade... Em resumo, o sistema feudal produziu simultaneamente as suas cortes de pobres e as redes de protecção que os mantinham em contracto com todos os outros.»
Deste modo, a interpretação marxista mostra como a sociedade feudal e em seguida a pós-feudal é capaz de se adaptar às transformações e perturbações sociais e permitiu introduzir por efeito da fraternidade o elemento solidário.
De facto, todas estas fraternidades particulares (corporações de ofícios, associações de trabalho e de ajuda mútua, confrarias pias, fraternidade caritativas, ordens religiosas...) funcionavam segundo estatutos políticos muito precisos e rigorosos , tendo dado muitas vezes provas de democracia real (com eleições como modus operandi mas que não esquecia a fonte principal) durante séculos. «Avoir voix au chapitre»* é uma expressão do mais elementar e do mais eficaz funcionamente democrático. Ao diluir as fraternidades particulares numa fraternidade universal, mais ninguém pode ter «voto no capítulo» porque não existe «capítulo» universal. Os únicos votos que a fraternidade universal autoriza são os contados nas urnas. Deste modo, uma voz já não se faz ouvir, um homem deixa de falar, conta-se apenas o seu voto. Já não estamos mais no âmbito do acto de falar, estamos no da linguagem matemática. A uma democracia baseada na palavra como acto substitui-se uma democracia baseada sobre a contagem dos códigos (não sendo as sondagens mais do que tentativas desesperadas de conhecer o que os códigos querem dizer).
Foi uma lei revolucionária (a Lei Le Chapelier de 14 de Junho de 1791) que aboliu as corporações, as associações de trabalho e de ajuda mútua, as assembleias de camponeses e de operários. Em 13 de Fevereiro de 1790, uma outra lei tinha abolido os votos religiosos. Esvaziando assim a noção de fraternidade das noções do corpo comum, de carne e de encarnação, de língua e de história comuns, os revolucionários aboliram a possibilidade de uma verdadeira democracia. É no momento em que os republicanos propunham a fraternidade como projecto político que eles aboliam as condições possíveis da sua aplicação.
Os mais pessimistas dos hermeneutas da divisa revolucionária explicam que a fraternidade representa a palavra que permite fazer a articulação entre as duas outras palavras, antagonistas da divisa. Inclinando-se a liberdade para a direita e a igualdade para a esquerda, a única maneira de dilacerar a nação eterna guerra civil é a de superar os defeitos da direita e da esquerda por meio da fraternidade. Na altura de fazer o balanço, podemos dizer que mesmo élan nacional, as únicas vezes em que a liberdade e a igualdade emudeceram para deixar a fraternidade falar, foram os momentos em que se estava em guerra. Foi apenas na lama e no sangue que a nação quis que os homens fossem irmãos.
*Um expressão Francesa, que em Português equivale à expressão «Ter voto na matéria»
Fonte: O Livro Negro da revolução Francesa DIR. Renaud Escande
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