D. Afonso Henriques mandou construir um palácio e uma catedral para o bispo Gilberto, tendo oferecido uma mansão a cada um dos padres estrangeiros. Porque muitos dos cruzados leigos não queriam regressar aos seus países de origem, nem viver na cidade que tinham efectivamente destruído, Afonso Henriques cedeu-lhes algumas herdades a leste de Lisboa, designadamente nas imediações de Vila Franca de Xira, na margem norte do Tejo. Conta-se que, em resposta aos conselheiros que protestaram contra tais benesses aos bárbaros por parte da nova nação, o rei terá dito: «É porque sois tão gentis-homens que precisamos dessa gente para nos defender.»
Para Bernardo de Clairvaux, de regresso à Borgonha, a verdadeira luta pela conversão da zona sudoeste da Europa ainda não tinha sido travada e teria de recusar os métodos militares e evitar qualquer espécie de coacção. Os monges de Cister, que ele liderava, haviam renunciado à violência, ameaçados de excomunhão. Os seus objectivos eram a conversão das suas almas através de um processo gradual de crescente sintonia com a palavra de Cristo. Fora dos muros do mosteiros, não se devia pregar o Evangelho, mas sim vivê-lo. Só assim seria, de facto, possível mostrar que a dimensão do Cristianismo era superior ao do Islão.
A norte de Lisboa, Afonso Henriques concedeu a Bernardo, praticamente, a soberania sobre um vasto território, identificado actualmente pelo nome de costa de prata, que se estende das colinas de calcário do centro de Portugal até à Nazaré, no Atlântico, e de Óbidos até Leiria. Os monges de Cister, vindos da Borgonha para tomar posse das terras, eram livres de fazer as suas próprias leis, administrar a justiça, cobrar impostos e criar e gerir empresas. Canonicamente, não dependiam de Gilberto nem dos outros bispos locais, mas directamente do Papa, através de Bernardo. AS terras que lhes tinham sido concedidas estavam praticamente abandonadas, já que, durante o século anterior, haviam funcionado como uma espécie de fronteira em constante mutação entre a Cristandade e o Islão. A maior parte dos habitantes que não tinham sido capturados, escravizados ou mortos, por um dos lados, tinham fugido ou haviam sido vítimas pela peste. Com a proibição das ordens religiosas em Portugal, os monges foram finalmente expulsos, em 1834. Ainda ali se encontram actualmente agricultores que são descendentes dos colonos trazidos pelos monges, nos séculos XII e XIII, e também, ao atravessar-se a região de automóvel, se pode constatar que as zonas mais afastadas das estradas principais permanecem, em grande parte, como foram recriadas pelos cistercienses há 800 anos. Pomares de maças, pêssegos, pêras e marmelos coabitam com laranjeiras e limoeiros, meloeiros e morangueiros, e, nos campos, multiplicam-se as colmeias. Existem caracóis, codornizes, vários tipos de aves domésticas e faisões domesticados. Há vinhas nas encostas pedregosas e pinhais na planície arenosa costeira.
Os cistercienses, também conhecidos por Bernardos, introduziram as mais avançadas técnicas de agronomia e deram a conhecer uma enorme variedade de plantas de toda a Europa. Organizaram a extracção e a fundição do ferro e, junto à costa, desenvolveram a indústria da construção naval, das pescas, da extracção do sal, bem como a salga e a seca do bacalhau. A confecção de compotas e conservas segundo receitas suas ainda hoje é um importante negócio, havendo mesmo uma feira destes produtos, juntamente com presuntos e salsichas caseiras, realizada anualmente em Leiria, por ocasião da festa de São Bernardo. Introduziram ainda a arte do vidro, de tal modo que o cristal Atlantis é, hoje, o produto mais conhecido da região, a nível internacional.
Deram uma nova perspectiva social à vida do dia-a-dia, proibindo a escravatura nos seus domínios. Nas vinhas, como em outras actividades agrícolas, pagavam salários justos aos trabalhadores e os monges agiam não como patrões, mas trabalhavam lado a lado, executando as mesmas tarefas. A alfabetização, designadamente o domínio da língua franca europeia, o latim, que, até então, constituía um privilégio exclusivo da Igreja, passou a ser leccionado gratuitamente em escolas criadas para o efeito. O abade da ordem participava nos conselhos do rei como uma espécie de assistente social, ainda que, na prática, a sua acção fosse mais abrangente. Procurava garantir alimento aos que tinham fome, roupa e abrigo aos mais necessitados, assistência médica aos docentes, instrução aos jovens e apoio aos idosos.
Este relato terá sido classificado de demagogo por protestantes ingleses, de passagem pela região quando esta estava no auge, entre os séculos XVI e XVIII. Em 1774, o major Dalrymple, brindado com boa mesa e bom vinho pelos monges, escreveu no seu diário: «Estes pastores celestiais possuem tanta riqueza que se comprazem na preguiça e no ócio, o que constitui um empecilho para a sociedade.» Dez anos mais tarde, no entanto, o negociante escocês William Stephens considerava que o insucesso da oficina de tecelagem da cambraia se ficava a dever à generosidade dos monges em relação à população. «Ao distribuir bens supérfluos pelas populações, eles estão apenas a estimular o ócio. Tal facto torna ineficaz qualquer esforço de gestão, já que contribui para a diminuição de autoridade sobre os trabalhadores.»
Texto retirado do livro "A Primeira Aldeia Global - Como Portugal mudou o mundo"
Autor: Martin Page - 6º edição Casadasletras
segunda-feira, 5 de julho de 2010
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